Perfil Poesia Brasileira, Gilka Machado: “Como uma gata errando em seu eterno cio.”
O teu olhar
luzente,
lindo,
ora descendo, ora subindo,
a me fitar...
o teu olhar
manso, indolente,
dá-me a impressão de uma serpente
pelo meu corpo a se enroscar.
(Gilka Machado)
Mesmo em uma época na qual se fala tanto em feminismo como a que vivemos hoje, a busca pela literatura que demonstra tal corrente ainda é escassa. Quem procura o feminismo na literatura tem a tendência de se ater a Simone de Beauvoir e, no caso brasileiro, a tão cultuada Hilda Hilst – que virou febre nos últimos anos pela presença da força feminina em sua obra.
Poucos conhecem Gilka da Costa de Melo, que mais tarde viria a ser Gilka da Costa de Melo Machado, ou simplesmente Gilka Machado, como fora – e é – conhecida pela minoria que tem o prazer de informar-se sobre suas criações. O motivo de concatenar o feminismo e Gilka Machado é simples: Gilka foi a precursora da poesia erótica feminina no Brasil.
Gilka nasceu em 12 de Março de 1893, na cidade do Rio de Janeiro. Sua família tem origens artísticas, o pai, Hortêncio da Gama Souza Melo, era poeta, e a mãe, Thereza Christina Moniz da Costa, era atriz de rádio e teatro. Ainda, tinha como avô Francisco Moniz Barreto, que foi apelidade de Bocage brasileiro, de onde é dito que Gilka tirou inspiração para inovar em sua poesia.
A vocação para poesia era notada desde a infância, tendo recebido prêmios diversos pelo seu desempenho no assunto ainda na escola. Porém, iniciou sua carreira como poetisa a partir da era pré-moderna. A obra de Gilka retrata bastante tal período, mostrando-se simbolista dedicada com traços parnasianos. Seu diferencial para a literatura é que causou um grande rebuliço ao se desgarrar das amarras do que era a poesia feminina na época, deixando a corrente conservadora de lado e apostando em uma poesia ousada, carregada de liberdade e erotismo. Sua produção é sensorial, trazendo em si o amor carnal, o prazer sexual e a manifestação da alma feminina, com todos os seus anseios, vontades e desejos. (E que prazer o meu! que prazer insensato!/– pela vista comer-te o pêssego do lábio,/e o pêssego comer apenas pelo tato).
Além de lançar-se como pioneira na libertação poética da mulher, Gilka também foi ativista política e social de grande importância. Em 1910, foi uma das idealizadoras do Partido Republicano Feminino, que tinha como objetivo a luta pelo sufrágio feminino, abrindo o caminho para discussões sobre os direitos das mulheres. No mesmo ano, casou-se com o poeta e jornalista Rodolfo de Melo Machado – tornando-se Gilka Machado – falecido 13 anos depois, com quem teve dois filhos. O rapaz, Hélio, morreu em 1979, é o tema de seu último poema ("Meu menino"). A moça, Eros, fez-se uma grande bailarina, reconhecida internacionalmente pelo nome de Eros Volúsia.
Seu livro de estreia é Crystaes Partidos, de 1915, carregado da estética simbolista e traz em si um erotismo chocante para a massa poética. Configuram-se também como obras importantes de Gilka: Meu Glorioso Pecado (1928) e Sublimação (1938), este último trazendo, além de toda a sensualidade, uma notável temática social e o primeiro destacando com excelência todos seus temas abordados.
Em 1933, foi eleita a maior poetisa brasileira pela revista O Malho, por vários intelectuais. E em 1977, assim que a Academia Brasileira de Letras abriu espaço para a entrada de mulheres, Gilka foi incentivada por muitos a concorrer – com ênfase a Jorge Amado ("Caso venha a se candidatar, saiba que tem o meu voto, nos quatro escrutínios") -, mas não o fez. Recebeu o maior prêmio da Academia, o Machado de Assis, em 1979.
Suas Poesias Completas foram editadas por ela mesma, escolhidos 184 poemas, em 1978, três anos antes de sua morte. Faleceu em 17 de Dezembro de 1980, na sua cidade de origem, o Rio de Janeiro.
O grito de uma alma que clama por liberdade, tanto político-social quanto existencial, está arraigado na obra de Gilka Machado. Há, em seus escritos, o toque sensível do feminino acompanhado da força de quem luta, seja através do erotismo (que fora utilizado por ela como ferramenta para a alforria) ou da exposição do que é ser mulher.
POEMAS
MEU GLORIOSO PECADO III
A que buscas em mim,
que vive em meio de nós,
e nos unindo nos separa,
não sei bem aonde vai,
de onde veio,
trago-a no sangue
assim como uma tara
Dou-te a carne que sou...
Mas teu anseio
fôra possuí-la -
a espiritual, a rara,
essa que tem o olhar
ao mundo alheio,
essa que tão somente
astros encara
Por que não sou
como as demais mulheres?
Sinto que, me possuindo,
em mim preferes
aquela que é
o meu íntimo avantesma...
E, o meu amor,
que ciúme dessa estranha,
dessa rival
que os dias
me acompanha,
para ruína gloriosa
de mim mesma!
PERFUME
À Alberto de Oliveira
Vaga revelação das sensações secretas,
das mudas sensações dos mudos vegetaes;
arco abstracto que afina as emoções dos poetas
e que ao violino da alma arranca sons iriaes.
Ó perfume que a dôr das plantas interpretas
e encerras, muita vez, desesperos mortaes!
busco sempre sentir-te errar, nas noutes quietas,
quando teu floreo corpo em somno immerso jaz.
És um espiritual desprendimento ao luar,
si á noute sonha a flor do calice no leito,
e és a transpiração da planta á luz solar.
Mas, si acaso, te estrahe o homem - sêr destruidor,
perfume! - descomposto, inane, liqueifeito,
és a essencia, és a vida, és o sangue da flôr.
FELINA
Minha animada boa de veludo,
minha serpente de frouxel, estranha,
com que interesse as volições te estudo!
Com que amor minha vista te acompanha!
Tens muito de mulher, nesse teu mundo,
lírico ideal que a vida te emaranha,
pois meu ser interior vejo desnudo
se te investigo a mansuetude e a sanha
Expões, a um tempo langoroso e arisca,
sutilezas à mão que te acarinha,
garras à mão que a te magoar se arrisca
Guardas, ó tato corporificado!
A alta ternura e a cólera daninha do
meu amor que exige ser amado!
OLHOS NUNS OLHOS
De onde vêm,
aonde vão teus olhos,
criança,
tão cansados assim
de caminhar?
Dessa tua existência
nova e mansa
como pode provir
um tal pesar?
A alma de fantasia
não se cansa!
Nunca existiu tristeza
nesse olhar;
é que a minha mortal
desesperança te olha
e nos olhos teus
vai-se espelhar
Com toda a vista
em tua vista presa,
penso: uma dor
tão dolorosa assim
só há na minha
interna profundeza...
Não me olhes mais,
formoso querubim!
que vejo nos teus olhos
a tristeza
dos meus olhos
olhando pra mim
ESBOÇO
Teus lábios inquietos
pelo meu corpo
acendiam astros...
e no corpo da mata
os pirilampos
de quando em quando,
insinuavam
fosforescentes carícias...
e o corpo do silêncio estremecia,
chocalhava,
com os guizos
do cri-cri osculante
dos grilos que imitavam
a música de tua boca...
e no corpo da noite
as estrelas cantavam
com a voz trêmula e rútila
de teus beijos...
ENCANTAMENTO
A Francisco Alves - O perfeito intérprete da canção brasileira
Canta,
que tua voz
ardente e moça
faz com que eu sinta a meiguice
das palavras que a vida não me disse.
Para te ouvir melhor
abro as janelas
e fico a sós
com tua voz
sonhando
que a noite está cantando
pelos lábios de fogo das estrelas.
Canta,
boca febril que não conheço,
que nunca me falaste e que me dizes tudo!...
Ave estranha
de garras de veludo,
entoa para mim
uma canção sem fim!
Canta,
que ao teu canto vejo
em tudo
quietude atroz
de insatisfeito desejo
Canta,
— em cada ouvido há um beijo
para tua linda voz.
(...)
REFLEXÃO
Há certas almas
como as borboletas,
cuja fragilidade de asas
não resiste ao mais leve contato,
que deixam ficar pedaços
pelos dedos que as tocam.
Em seu vôo de ideal,
deslumbram olhos,
atraem as vistas:
perseguem-nas,
alcançam-nas,
detêm-nas,
mas, quase sempre,
por saciedade
ou piedade,
libertam-nas outra vez.
Ela, porém, não voam como dantes,
ficam vazias de si mesmas,
cheias de desalento...
Almas e borboletas,
não fosse a tentação das cousas rasas;
- o amor de néctar,
- o néctar do amor,
e pairaríamos nos cimos
seduzindo do alto,
admirando de longe!...
REFLEXÕES IV
Eu sinto que nasci para o pecado,
se é pecado, na Terra, amar o Amor;
anseios me atravessam, lado a lado,
numa ternura que não posso expor.
Filha de um louco amor desventurado,
trago nas veias lírico fervor,
e, se meus dias a abstinência hei dado,
amei como ninguém pode supor.
Fiz do silêncio meu constante brado,
e ao que quero costumo sempre opor o que devo,
no rumo que hei traçado.
Será maior meu gozo ou minha dor,
ante a alegria de não ter pecado
e a mágoa da renúncia deste amor?!...
INCENSO
A Olavo Bilac
Quando, dentro de um templo, a corola de prata
do turíbulo oscila e todo o ambiente incensa,
fica pairando no ar, intangível e densa,
uma escada espiral que aos poucos se desata.
Enquanto bamboleia essa escada e suspensa
paira, uma ânsia de céus o meu ser arrebata,
e por ela a subir numa fuga insensata,
vai minha alma ganhando o rumo azul da crença.
O turíbulo é uma ave a esvoaçar, quando em quando
arde o incenso ... Um rumor ondula, no ar se espalma,
sinto no meu olfato asas brancas roçando.
E, sempre que de um templo o largo umbral transponho,
logo o incenso me enleva e transporta minha alma
à presença de Deus na atmosfera