16 de outubro de 2014

Revolução

 

Os mártires de qualquer espécie são sempre uma forma de aviso. Se um homem precisar morrer para que outro se salve, não vejo nisso qualquer contradição. Cresci ouvindo isso. Ele era filiado ao partido. E os meios justificam os fins, algumas vezes. Em outras, precisamos atravessar turbulências, gravidade para alcançar o almejado. Tudo aquilo entrava na minha cabeça. O Estado precisa da mentira, ela é útil a determinados manejos. Ele não pode permanecer com a mentira. É legitimo utilizá-la, mas é preciso torná-la real para quando for verificada. A mentira é uma projeção do que será a verdade. Não poupe esforço para alcançá-la.

Minha mãe não poupava críticas a mulher da casa da frente. Chamava-a de uns nomes de reputação duvidosa. Ensinava que era errado o que ela fazia. E tudo aquilo entrava em minha cabeça. A mulher da frente se deitava com vários homens. A mulher da casa da frente tinha filhos com eles. A minha mãe era uma guardiã da moral, saída de passeatas da TFP, carregada de idéias que me pareciam certas. A mulher deve ser casada, conformar-se com o casamento, morrer com o marido, deve se dar ao respeito e não sair por aí se esfregando em homem. Nunca, em minha vida, vi alguém tão vagabunda. Assim minha mãe se referia a mulher da casa da frente. Elas não gostavam uma da outra. Tinham longas discussões. Os filhos viviam em competição. Tudo virava motivo para chacota. Se a filha da mulher da casa da frente era reprovada ou se um de meus irmãos, não importava. Minha mãe tinha a língua afiada e a mulher da casa da frente também. Eu não gostava da mulher da casa da frente.

É mentira. Sonhava com a mulher da casa da frente. Ela com a bermudinha curta, mostrando a polpa da bunda. Ela lavando roupa sem sutiã. Ela limpando o peixe com decote que deixava ver os seios. Sonhava em meter um filho na mulher da casa da frente. Ela me olhava. Minha mãe me recriminava quando me pegava olhando longamente para ela. Está olhando o quê? Aquela piranha? Quando olhava a mulher da casa da frente meu pinto ficava duro. Meu calção estufava. Demorava no banho. Todo pensamento voltado para os seios, pernas e bunda da mulher da casa da frente. Ela era vagabunda, deitava com qualquer um, por que não comigo? Minha mãe via minhas intenções. Quer comer a piranha, não é? Não, não queria apenas comê-la, mas trancá-la em um quarto para servir somente a mim. E todos aqueles homens seriam proibidos de tocá-la. Cortaria o pau de todos. O meu pinto duro embaixo do calção quando ela passava. Ela vai ser minha. Minha mãe, com rédea curta, não me perdia de vista.

Expropriação não é roubo, é empréstimo. Quando a revolução triunfar todos serão ressarcidos. E quando se toma de um tirano repatria-se para o povo. Não há deslize ético nisso. Não se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos, não é? Quem é a menina por quem você está apaixonado? A melhor camaradagem é entre homens. A mulher é para trazer  filhos para a revolução. É a parte mais fraca de uma nação, não sabe? Por que você perde tempo com as mulheres? Dei-lhe os livros, você leu? É improvável. Por que não resolve logo isto? A mulher mora em frente à sua casa, não? Muitos pretendentes. E você a quer só para si mesmo? Tire-a deles, rapaz. Você é mais forte. Obstáculos? Remova-os. Lembra-se do que disse sobre a revolução? Não há nada de errado nisso. É preciso cautela. Além de cautela, planejamento. Se a mulher é tão importante para você, ela é sua revolução. Procure construí-la, rapaz. Às ferramentas, juventude!

A mulher da frente conversa com minha mãe. Ela descartou no lixo um caralho lilás. Minha mãe foi tomar satisfação com a piça na mão. Balançava na cara da rival o membro molenga, exigindo explicação. Parecia resultado de uma amputação. A mulher da frente, ria. Minha mãe a olhava, perguntando qual era a graça. Os vizinhos também riam. De fato, era engraçado. Duas mulheres, no portão, discutindo sobre a propriedade do caralho. A mulher da frente vestia camisola. O cabelo preso brilhava em contato com o sol. Minha mãe de terninho, pronta para ir ao trabalho. Meus olhos pregados na piça molenga, agora, nas mãos da verdadeira proprietária, que a manejava como um chicote. A discussão, encerrada. A mulher da frente viu minha mãe virar-se para entrar, fez uma careta e um gesto: a boca e o brinquedo se conjugavam. Minha mãe se voltou outra vez. Ela reassumiu a postura séria da conversa. Eu esporrei.

Ele me entregou um estojo. Não se faz uma revolução sem armas. Abri o estojo. Está municiada. Segurei o conteúdo do estojo. É um revólver. Não precisarei dele. Claro que precisará, filho. Acha que eles a entregarão facilmente? Não era preciso outro argumento. Lembre-se: os opressores devem morrer. Nada pode se interpor entre você e o seu desejo. Nada. Nem mesmo a sua mãe. Leve-o. Naquele dia ele não me falou mais sobre revolução.

Por Mariel Reis

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Mariel Reis é contista, ensaísta e editor. Publicará, pela editora Oitava Rima, no 1º semestre de 2015, o livro Bordel de Bolso (narrativas).