17 de setembro de 2014

Reféns do silêncio

Era alta madrugada quando André fechou a porta de casa, cuidadoso para não romper o silêncio. Estava a caminho do banheiro quando ouviu a porta do quarto da mãe se abrir. Engoliu em seco, esperou. Talvez se tratasse só um golpe de ar inoportuno, para importunar-lhe os nervos. André prendeu a respiração, aguardando o momento para se mover, entrar no banheiro. Sua porção racional mostrava-lhe o ridículo da situação. Ele tinha 30 anos, trabalhava, pagava metade do aluguel e outras despesas da casa. Pagava muitas contas para ter que prestar contas dos seus atos.  Ele abriu devagar a porta do banheiro. Ao som mínimo do “click” da maçaneta, ecoou a voz da mãe, amargurada.

- A essa hora, André Luiz?

André abriu a fechou a boca, mas a voz não saiu. Dizer o quê? Era tarde mesmo.

- Onde você estava até agora? E esse cheiro? Não é maconha, é?

- Não, mãe. É meu perfume... – respondeu André, num fio de voz. A mãe não ouviu, como sempre, ou entendeu o que quis. Como sempre.

- Só faltava essa! Meu único filho, maconheiro. Meu Deus, que vergonha teria seu pai. Em que companhias você tem andado?

André desistiu de se defender antes de tentar. Seria um esforço vão. Nascera condenado. Seu júri era a família, desde o primeiro ancestral até o último bebê que nascera, havia poucos dias. A promotoria era o mundo de gente normal, ordeira, temente a Deus. “Bobagem”, dizia-lhe a consciência.  “O mundo mudou. O que é ser normal?”.

Mas a consciência de André não conseguia ser seu próprio juiz. Ou seu guia. A menção ao pai lhe provocou o conhecido arrepio na espinha, o mesmo que antecedia as memoráveis surras paternas que ele levava de vez em sempre. O velho morrera havia sete anos, bem a tempo de André desistir da faculdade de Engenharia. Por dias ouvira a ladainha amargurada da mãe que o acusava de apunhalar o pai pelas costas. Logo ele, um homem tão bom, que queria ver o filho doutor, formado!

Um homem tão bom. André despiu-se e foi para debaixo do chuveiro.  Um homem tão bom, pensava André enquanto deslizava o sabão pelo corpo cheio de marcas. Mas nenhuma era tão feia quanto as que havia na sua lembrança. A mais horrenda era do dia em que o pai o pegara na casa da vizinha, brincando de casinha. Ele tinha uma boneca nos braços, embalava-a com carinho. O pai o arrastara para casa pelas orelhas, trancou-se com ele no banheiro. Levou uma surra de cinta  e socos até entortar.

- Onde já se viu de boneca na mão! Isso lá é coisa de homem?!

- A gente tava brincando de casinha... – murmurava o menino entre soluços.

- Homem não brinca dessas coisas! Casinha é coisa de mulherzinha!

- Mas eu era o pai! – chorava a criança. Quanto mais lágrimas, mais apanhava.

- Que pai que nada! Já me viu de bonequinha por aí?! E engole o choro. Aprende a apanhar que nem macho! Se eu lhe vir de bonequinha na mão, brincando com menina ou chorando que nem mariquinha eu vou cortar fora isso que você dentro das calças e dar pros cachorros.  – sibilou o pai. Tinha o hálito carregado de cigarro, que fumava um atrás do outro e que o matou, aos 59 anos, vítima de câncer generalizado.

- Um homem tão bom. –  a mãe se lamuriava, do corredor, despertando o rapaz do túnel obscuro do tempo. – Não merecia isso.

André enfiou a cabeça debaixo do chuveiro até que só ouvisse o barulho da água martelando sobre a cabeça. Desde os onze anos aprendera a apenas ouvir e calar, mesmo a dor. Ele não entendia por que era diferente, por que na escola gostava mais da companhia das meninas e por que ao ver novelas queria namorar os galãs e não as mocinhas. Não era de propósito, ele não escolhia ser assim, não escolhia ser espancado pelo pai nem  escarnecido pelos outros coleguinhas.

- Mulherzinha! Mulherzinha! Mulherzinha! – gritavam os garotos na escola.

- Não sou, não! – ele gritava de volta. E não era mesmo. André não era mulher, nem queria ser. Mas queria namorar o Indiana Jones e não a Madona. Não sabia porque e não tinha a quem perguntar. Cresceu isolado. Na adolescência, ia escondido na casa das amigas, dizia à mãe que ia jogar futebol ou fazer trabalho de grupo. Aos 18 anos seu pai lhe deu dinheiro para “ ir pegar uma dona”.  O rapaz não entendeu.

- Uma dona! Mulher da vida! Prostituta! – rosnou o pai, tossindo com a fumaça do cigarro.  André pegou o dinheiro e saiu porta a fora, antes que apanhasse.  Não sabia aonde ir. Ele obviamente sabia o que era prostituição, mas não onde encontrar. A simples ideia de pagar por sexo o enojava.  Será que o pai dormia com putas além de dormir com sua mãe? André vomitou na calçada.  Mas aquele era o conselho de um homem bom. Seu pai. O modelo a seguir até o bordel mais próximo e deitar com uma desconhecida.

O rapaz tomou um ônibus, foi até o ponto final. Esperou o tempo passar e pegou o último ônibus de volta. Foi a única vez que não apanhou ou levou sermão ao chegar tarde a casa. Os pais estavam recolhidos, ele se trancou no quarto. Escondeu bem o dinheiro dado pelo pai. Depois pensaria no que fazer com aquilo: esmola na igreja, um presente pra mãe, qualquer coisa.

Com o passar do tempo, André falava cada vez menos com o pai e nada além do necessário.  Passou no vestibular para Engenharia para escapar da surra certa se falhasse. A mãe era uma figura apática, quase ausente da sua vida.  Se o pai não era seu modelo, ela tampouco.  Ele vivia para dentro, na solidão e no silêncio.  Sempre o silêncio.

Quando o pai estava nas últimas, foi vê-lo no hospital. Pouco restava de força no corpo magro esticado no leito. Com os pulmões, esôfago e faringe tomados pelo câncer, o velho já quase não podia falar, mas os olhos continuavam agressores. Foi com eles que fitou André, que estava sentado em uma cadeira, no canto mais distante possível. A mãe tinha ido ligar para uma das irmãs, aproveitando o horário de visitas.  André olhava para o relógio no pulso e para a porta, rezando para a mãe voltar logo e ele poder ir embora. Falar o quê? Das insuportáveis aulas de cálculo, das tediosas aulas de mecânica, da solidão nos intervalos ou na hora do almoço porque ele não era do time da cerveja nem do futebol de domingo, ou da caça à mulherada?  Nada tinha a dizer ao pai que não havia lhe deixado nem um resto, uma migalha de amor.

- Eu já vou indo... – André se levantou. Mais cinco minutos e encerravam-se as visitas – Mamãe já vem.

Os olhos agressores do pai fitaram-no. A boca trancada numa expressão dura. O rapaz abriu a porta e ouviu a voz roufenha do pai chamá-lo.

- André...

Ele se voltou. O pai tossia e respirava com dificuldade, juntando esforços para falar:

- ... eu sei o que você é.

Essa foi a última frase que ele ouviu do pai. Palavras cuspidas com algo pior que ódio. Um desprezo arrancado do fundo da alma tão tumorosa quanto o corpo.

André deixou a faculdade, arranjou um bom emprego graças às suas habilidades em informática, área da qual ele realmente gostava.  Conheceu outras pessoas, descobriu que havia outros como ele. Aprendeu para onde ir quando quisesse um pouco de atenção e ao menos uma imitação de carinho, mas sempre discreto, na defensiva, em silêncio.  Amar se aprende amando e ele não tivera esse tipo de educação.  Na televisão, especialistas falavam em opção versus orientação. André não optara. Ninguém opta por uma vida que é imposta à margem.  Tampouco fora orientado. Simplesmente era... o quê? André engolia os próprios pensamentos, tinha medo até das denominações, as pejorativas e as politicamente corretas.  Gay. Bicha. Pederasta. Homossexual.  “Sou Humano” dizia-se, mas como não conseguia crer nisso, diante do olhar reprovador e severo da mãe que lhe cobrava esposa e filhos. Ele temia o olhar dos outros. Olhar para dentro de si era ver um abismo. Evitava espelhos, que o incomodavam.

André fechou a torneira do chuveiro. Finalmente, a mãe se cansara e fora dormir. Ele se enxugou e foi para o quarto. Havia uma mensagem no celular.

“ Me liga.  Tem churrasco amanhã. Elisa”

Elisa era uma colega de trabalho. Loira, muito bonita, disputada pela “homarada” do escritório e do resto do mundo. Aproximara-se de André porque fora o único que não lhe passara uma cantada nos dois primeiros minutos de conversa. Tornaram-se amigos. André era bom ouvinte e se tornou confidente da moça. Diferente dele, Elisa não sofrera abusos na infância, nunca tivera problemas na escola ou na família. A não ser a incômoda mania da mãe e das tias de quererem bancar o cupido. Elisa contou a André como se horrorizava ante a ideia de acabar como a irmã, cujo marido já tinha outras desde o tempo de namoro. Ou como as primas com os maridos grosseiros, entediados, mais interessados em futebol e cerveja do que no casamento ou nos filhos.

- Nem todo homem é assim. – Argumentou André, lembrando do pai mas se sentindo na obrigação de não desiludir uma mulher tão doce e tão bonita. – Tem gente boa no mundo.

- Eu sei. – abriu um lindo sorriso – Não tenho raiva dos homens. O problema é o seguinte... entre o Indiana Jones e a Madona, eu prefiro a Madona.

André demorou para encontrar a voz.  Como assim?  Ela era tão linda, popular.

- Por quê? – ele indagou. – Você tem uma vida tão tranquila...

- Minha vida é tranquila porque ninguém sabe dela.

A partir dali, se tornaram quase inseparáveis.  André a levava em casa de vez em quando, e juntos enfrentavam as longas ladainhas da mãe dele, que queria netos, que sofria muito, que sentia falta do marido.

- Um homem tão bom...

Por sua vez, André não se importava de acompanhar Elisa nas festinhas da família dela e admirar-se de como o mundo não reconhece impostores, quando não quer. Por isso,  no dia seguinte ele iria envergar sua melhor fantasia de macho e acompanhar Elisa ao churrasco. Lá,  ia sorrir diante das piadinhas e ocultar a ironia quando ouvia a indagação acerca de quando eles iam parar com o papo de amiguinhos e “se assumir”.  E assim tocavam suas vidas feitas de momentos roubados, de meias mentiras e verdades inventadas.  Ambos amigos e aliados. Reféns do mesmo silêncio.

 

por Yndiara Macedo