23 de julho de 2014

Poesia LTDA e a poética da palavra


Charles Marlon, no seu livro de estreia, Poesia Ltda(Patuá, 2012), evidencia algo que os poetas contemporâneos têm se preocupado mais: o uso da palavra no espaço gráfico da página. Isso nos lembra quando, certa vez, o poeta Mallarmé foi questionado por um pintor se este poderia ser poeta, pois tinha muitas ideias para seus poemas. Em resposta, o poeta disse que um poema não se faz com ideias, mas com palavras. Dessa ideia, podemos concluir que a palavra é o ponto de partida e chegada na poética de Charles Marlon.

Esse recurso palavresco é utilizado pelo poeta ao fragmentar as palavras, revelando nelas outras palavras, ou outros corpos-morfológicos. Esse trabalho morfológico de Marlon, me lembrou o que Arnaldo Antunes fez no livro 2 ou + corpos no mesmo espaço, o poeta Antunes fez da fragmentação uma marca em sua poética. O autor de Poesia Ltda parece ter apreendido a lição de Antunes e a empregou em seu livro de estreia. Ao fragmentar a palavra, Charles amplia mais ainda a literariedade dos poemas.

Tenho que ressaltar que o livro é provocador da capa à contra-capa. A provocação começa na epígrafe do livro: 

“Após aberto consumir em até 30 dias”

A prefaciadora da obra, Monica Simas, comenta sobre essa epígrafe fazendo algumas indagações/provocações como: 

Será a poesia algo perecível? Será ela algo para ser consumido tal como outros bens de mercado? E este prazo? Não indicará que este bem é algo orgânico, corpo de linguagem vivo? É esta provocação um apelo ou uma “brincadeira?”

Concordo, principalmente, quando Monica propõe que a poesia se trata de “algo orgânico, corpo de linguagem vivo”, assim me parece que o livro possui uma linguagem táctea. Algo que se pode tocar a partir dos jogos-morfológicos do poeta.


Ainda na apresentação, Monica Simas comenta que a solidão é algo constante na poética de Charles Marlon. Todo poeta, a meu ver, existe no instante solitário. O bom companheiro do poeta é o lápis e a palavra desenhada na página. Esses desenhos-palavrescos se apresentam acompanhados de uma solidão que aparta o eu de si mesmo, como no poema que abre o livro:

Sentado no canto da sala
Eu
Via as pessoas que chegavam.
Eu
Via as pessoas,
Mas
Eu
Não as via.

Eram os dias dos meus anos...

Sentado no centro da sala,
As pessoas já não chegam,
Não chegam
Estão aqui.

Falto
eu.


O eu (minúsculo) se aparta do poema, enquanto o Eu (maiúsculo) se mantem na mesma estrutura línea dos versos. Encontramos nesse exemplo, um dos vários casos em que a palavra se torna algo orgânico, conseguindo assim ter vida própria e se apartar do poema, ou, se configurar da maneira que lhe convier. O eu (minúsculo) que se aparta do poema, poderia também, ser interpretado como a solidão que se aparta do poeta ao estar acompanhado por pessoas, no caso, pessoas na sala.

Antônio Cícero no livro Poesia e Filosofia comenta que a poesia nada comunica. Diante da fala de Cícero entramos em um paradoxo: Mas se não comunica, qual o sentido de um poema? Ainda citando o livro, Poesia e Filosofia, notaremos mais à frente que para o autor o poema na verdade é um monumento erguido com palavras, não um mero documento sentimental. Charles Marlon apresenta essa incomunicabilidade em alguns versos, como nos versos abaixo:

Destino,
com tino,
desatino.

Destino,
com tino
contínuo:
des
destino.

Destino.
Tino com tino
outros
dez
destinos.

Esse poema acima é um bom exemplo do que o poeta francês aconselhou a fazer na poesia: decantar a palavra. Durante todo o Poesia Ltda, notamos um jovem poeta dono de um traço peculiar e próprio da geração pós-moderna: a brincadeira com as palavras. Outro poema escultural de Charles Marlon é:

De-
      cifrar.
Re-
      cifrar.
cifrar De-
  novo,
  ab
  ovo
  à
  ave
  ad
in-
     finitum.

O jogo morfológico é bastante visível nesses dois últimos poemas. A brincadeira morfológica segue o livro todo. Há poemas em que o poeta utiliza de palavras em outros idiomas, como o francês e o inglês. Este último, o inglês, aparece em versos e em títulos de alguns poemas. Isso ocorre devido a necessidade de incorporar no poema, palavras de origem estrangeira. Pois o poeta tem diante de si todos os idiomas para construir o seu monumento poético, sabendo disso, Charles Marlon compoe utilizando o idioma/palavra que lhe melhor convier.
Queria eu falar mais sobre o livro. Mas como se trata de um livro-jogo, não posso entregar todos os comandos devidos para se ler o Poesia Ltda, se não o jogo perde o sentido que é desvendar os segredos por quem o joga.