19 de junho de 2014

D.R.* ao celular

 

Há lugares em que se vê claramente estampada aquela figurinha proibindo o uso do celular. Teatro, cinema, posto de gasolina. Nem pensar em ligar na igreja ou num velório, tremenda falta de educação. Mas há lugares em que ele deveria ser recolhido na portaria, evitaria muito problema.

Dizem que ele veio pra aproximar as pessoas, mas eu tenho minhas dúvidas. O celular toca nas horas mais inapropriadas e nos lugares mais inconvenientes. O usuário que nunca foi flagrado pelo celular que atire a primeira pedra.

A mulher entrou no banheiro com o marido. Que fique claro, ele estava do outro lado da linha telefônica. Ela havia levantado rapidamente da cama redonda onde ficara o “outro”, tinha dito para o marido que iria ao cinema. Como uma boa mulherzinha, havia dito hora e local do cinema. Ele trabalhava por horas e não tinha tempo para averiguar, ela pensava. E justificava para si mesma a traição como um desleixo dele. Falta de atenção, de alguém para conversar, enfim, tudo o que só um amante pode dar a você...

– Oi, amorzinho, tá tudo bem? (...) É, isso mesmo, ainda estou no shopping. (...) Acabei de sair da sala de cinema. (...) O filme não é muito bom, não, falta uma certa continuidade e... (...) Ah... que horas eu vou pra casa? Nossa, amor, quanto controle, né? (...) Ahn? (...) Amor, tá cortando a ligação, o sinal tá horrível...

Desligou o telefone com a cara mais assustada que nunca havia imaginado fazer. Abriu a porta e falou para o amante:

– Meu marido disse que tá aqui na saída do motel!!!

E ele, covarde e medroso como todo adolescente despreparado para a vida:

– Eu vou sair correndo. Se minha mãe sabe disso!!! Ela me mata!!!

– Mata nós dois, querido, esqueceu que ela é minha melhor amiga... mas e meu marido, o que eu faço?!

– O mesmo que eu quando minha mãe descobre que arrombei a lata de leite condensado: nega tudo!! E tem mais eu... fui!!! –  e saiu correndo com as calças por fechar, a cueca de surfista aparecendo...

O celular tocando de novo... do assento do banheiro onde permaneceu desde o início da conversa, ela atendeu. Estava paralisada de medo, mas estava começando a enxergar uma luz no fim do túnel....

– Oi, amorzinho (...) Não, não fui eu que desliguei, foi você (...) Ah, não foi (...) Então, caiu, meu amor (...) Aqui no shopping o sinal é horrível (...) Claro que eu estou no shopping, amor (...) Não tem barulho? É que eu estou no banheiro (...) O filme... como é o nome do filme que eu vim assistir? Amor, que insegurança besta (...) Eu não minto pra você, aliás eu nunca menti (...) Ok, amor, desculpa te interromper, pode falar (...) Ai, amor era um nome em inglês, você sabe que eu nunca aprendi inglês, você pergunta só pra me humilhar (...) Não, amor, eu não estou ganhando tempo, nem mudando de assunto (...) Você me enche de pergunta e vou ficando nervosa (...) Você está na saída do motel, que motel, meu amorzinho? (...) Esse motel em que eu estou? (...) Mas eu não estou em motel nenhum, amor, para de pensar besteira (...) Você viu uma mensagem no meu celular? Que mensagem, amor? Ai, amor, isso está ficando ridículo!! Olha, se você continuar desconfiando de mim isso não vai ter um final feliz, vou acabar achando que é você quem está me traindo (...) Amor, eu não estou virando o jogo (...) Ok, amor, e com quem eu estaria num motel? (...) Com o filho da Elzinha? Amor, ela é minha melhor amiga (...) Você viu a mensagem, ligou pro número e foi ela quem atendeu? Ah, vai ver ela está tendo um caso também (...) “Também”? Eu não disse “também”, amor (...) Ah, você tá gravando a ligação (...) Bom, então quer saber? Eu estou tendo um caso sim, com o filho da Elzinha sim, mas ela não sabe e se você contar nunca mais eu falo com você. Estou num motel sim, aquele que eu sempre pedi pra você me trazer e se você está na saída dele vai me ver sair daqui a pouco, quando eu pagar a conta com o SEU cartão de crédito (...) Por que eu fiz isso? Porque você me abandona pra viajar a trabalho, nunca me leva, não me deu os filhos que prometeu, aliás nem quer ouvir falar deles (...) Não, a culpa não é só sua, é minha também, pois eu deixei de me dedicar a mim mesma e passei a viver só a sua vida, os seus problemas, as suas vontades e as suas necessidades. Esqueci completamente que antes de você eu tinha uma vida profissional e pessoal. Estou completamente desnorteada, mas é culpa minha mesmo, você nunca me pediu nada disso. E agora eu vou desligar e você vai entrar aqui no quarto que eu estou pra gente discutir a nossa relação e ver se ainda sobra alguma coisa depois disso tudo (...) Amor, você está chorando? Oh, amor, não faz isso não (...) Vem logo pra cá, amor, eu também te amo e é o 512.

*: Discutir a Relação, aquela cosia chata que adoramos fazer e eles detestam... bom, nem sempre é assim...