2 pequenos grandes horrores de Luiz Bras
Pequena coleção de grandes horrores, novo livro de Luiz Bras, é uma coletânea de minicontos insólitos e irreverentes sobre os mais variados temas do mundo contemporâneo: máscaras sociais, globalização, fanatismo religioso, distúrbios urbanos, conflitos conjugais, mergulhos subjetivos, indústria cultural, sonhos e pesadelos, psicopatas e sociopatas, implantes neurológicos, viagens no tempo, epifanias, distopias, terrorismo, cidades imaginárias, aquecimento global, corrupção na política, revolução póshumana etc.
Nas ruínas do laboratório subterrâneo
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso — Estava deitado sobre as costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha — As inúmeras pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos — Sonhos intranquilos, costas duras como couraça, inúmeras pernas, que importância tem tudo isso? — Nenhuma, querido — Que é a vida? — Um frenesi — Que é a vida? — Uma ilusão, uma sombra, uma ficção — O maior bem é tristonho, porque toda a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são — Quando certa manhã você acordou metamorfoseado num inseto monstruoso, amorzinho, você demorou pra lembrar & aceitar que jamais havia sido outra coisa — Deixe de bobagem, luz de minha existência — Nas ruínas do laboratório subterrâneo nunca existiu criatura que não fosse um inseto monstruoso — A medicina genérica e a engenharia genética universalizaram a metamorfose — Verdade & ilusão, conhecimento & ignorância agora são a mesma vertigem — Está ouvindo o imenso silêncio do universo? — Pare de estrebuchar, abra outra garrafa de vinho e aprecie o calor do infinito mistério — A vida é incêndio, docinho, e os incêndios, incêndios são
Coisas caem de sua boca
Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira — Durante as discussões, a infelicidade vira grito & rocha — Coisas caem de sua boca — Asas-deltas, satélites, rojões, disparos de canhão — Coisas que transportam outras coisas, coisas que transportam pessoas — Aeroplanos, dirigíveis — Caem de sua boca aos meus pés envergonhados — Coisas & criaturas que mereciam um destino mais rarefeito, menos sólido — Um agrupamento de balões, um bando de andorinhas — Tudo ganha peso e se espatifa no chão — Nem mesmo o aerodinâmico foguete tripulado consegue voar pra longe — Mamãe, papai, calem a boca! — Caralho, vocês não veem que estão matando toda a leveza deste mundo?
Luiz Bras nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. É escritor e doutor em Letras pela usp. Já publicou diversos livros, entre eles Sozinho no deserto extremo (romance) e Paraíso líquido (contos). Colabora regularmente com a Folha de S.Paulo, resenhando lançamentos do mercado editorial. Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue ObjetoNãoIdentificado: http://luizbras.wordpress.com