2 de abril de 2014

2 pequenos grandes horrores de Luiz Bras

Pequena coleção de grandes horrores, novo livro de Luiz Bras, é uma coletânea de minicontos insólitos e irreverentes sobre os mais variados temas do mundo contemporâneo: máscaras sociais, globalização, fanatismo religioso, distúrbios urbanos, conflitos conjugais, mergulhos subjetivos, indústria cultural, sonhos e pesadelos, psicopatas e sociopatas, implantes neurológicos, viagens no tempo, epifanias, distopias, terrorismo, cidades imaginárias, aquecimento global, corrupção na política, revolução pós­humana etc.

Nas ruínas do laboratório subterrâneo

 

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso — Estava deitado sobre as costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha — As inúmeras pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos — Sonhos intranquilos, costas duras como couraça, inúmeras pernas, que importância tem tudo isso? — Nenhuma, querido — Que é a vida? — Um frenesi — Que é a vida? — Uma ilusão, uma sombra, uma ficção — O maior bem é tristonho, porque toda a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são — Quando certa manhã você acordou metamorfoseado num inseto monstruoso, amorzinho, você demorou pra lembrar & aceitar que jamais havia sido outra coisa — Deixe de bobagem, luz de minha existência — Nas ruínas do laboratório subterrâneo nunca existiu criatura que não fosse um inseto monstruoso — A medicina genérica e a engenharia genética universalizaram a metamorfose — Verdade & ilusão, conhecimento & ignorância agora são a mesma vertigem — Está ouvindo o imenso silêncio do universo? — Pare de estrebuchar, abra outra garrafa de vinho e aprecie o calor do infinito mistério — A vida é incêndio, docinho, e os incêndios, incêndios são

Coisas caem de sua boca

 

Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira — Durante as discussões, a infelicidade vira grito & rocha — Coisas caem de sua boca — Asas-deltas, satélites, rojões, disparos de canhão — Coisas que transportam outras coisas, coisas que transportam pessoas — Aeroplanos, dirigíveis — Caem de sua boca aos meus pés envergonhados — Coisas & criaturas que mereciam um destino mais rarefeito, menos sólido — Um agrupamento de balões, um bando de andorinhas — Tudo ganha peso e se espatifa no chão — Nem mesmo o aerodinâmico foguete tripulado consegue voar pra longe — Mamãe, papai, calem a boca! — Caralho, vocês não veem que estão matando toda a leveza deste mundo?

Luiz Bras nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. É escritor e doutor em Letras pela usp. Já publicou diversos livros, entre eles Sozinho no deserto extremo (romance) e Paraíso líquido (contos). Colabora regularmente com a Folha de S.Paulo, resenhando lançamentos do mercado editorial. Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue ObjetoNãoIdentificado: http://luizbras.wordpress.com