9 de outubro de 2013

Dúvidas enquanto espera ou À sua espera, de Carla Mühlhaus


“Não se pode estar imerso no presente para entendê-lo”
Sou daqueles leitores que o santo do livro tem que bater com o meu santo, ou seja, a capa é capaz de me deixar com vontade de folheá-lo mais do que os que não possuem um acabamento. Sou aficionado por capa e pelo objeto livro e por isso essa minha doença. O leitor não me julgue, pois, mesmo achando horrível o exterior de um livro, folheio qualquer um que me cai nas mãos.
Quando, pelo correio, chegou a minha casa um livro azulado que trazia, na capa, uma cegonha negra carregando (ou não) uma trouxa, que continha, talvez, um bebê, fiquei um pouco triste. Admito. Pensei que a trama, tendo em vista que era um romance, seria envolta de uma criança ou talvez sobre o nascimento de alguém, isso não me alegrou muito. Porém, como eu disse, folheio e leio sempre os livros que me chegam. Alguns ficam de lado, como já comentei em outros textos, pelo tempo, pela capa, pelos versos. Mas não era o caso desse livro, que já de início me mandava sair da imersão do presente para poder entendê-lo.
Apesar da cegonha com sua trouxa remeter ao nascimento ou a vinda de uma possível criatura, o assunto do livro não é isso, vai além, talvez até demais, sobre o que eu havia imaginado sobre o livro de Carla Mühlhaus, intitulado À sua espera.
Tomando a ideia da frase que abre esse texto, teremos que nos desprender do presente. Tentemos, então, nos imaginar no futuro que ainda não existe e que sempre criamos às avessas. Imaginemo-nos, por exemplo, como uma “senhora” de trinta e cinco anos que possui consigo uma dúvida quase existencial: ter ou não ter um filho, eis a questão. É importante, mesmo que homens, imaginarmo-nos, a partir de agora como mulher. Se a partir da primeira página do livro de Carla o leitor não se puser como mulher, acredito que não poderá entender o motivo do livro (se é que ele existe).
É esse, assim entendo, o mote para o livro de Carla, que aos poucos demonstra como é ser uma mulher, aos trinta e cinco anos, com uma dúvida cruel sobre ter ou não um filho. Quase como uma hipocondríaca da vida, ela corre atrás dos problemas que poderão advir da escolha de ter filhos e que ainda não existem. Uma luta psicológica se inicia antes mesmo de todo e qualquer processo acerca do nascimento existir. E aí é que mora o perigo.
A narrativa, que ora é tida por um narrador a distância, que sabe o que acontecia e o que pensava a jornalista, que considero ser a própria mulher em questão que nos conta o que aconteceu consigo, consegue construir inúmeras imagens do seu cotidiano que vão surgindo, aos poucos, juntas às suas dúvidas tecnocientíficas, religiosas e filosóficas. Já no início do livro, o narrador expõe o seu problema quanto ao pensamento humano, que anda atrasado tendo em vista tanta tecnologia solta no mundo:
“Também houve quem dissesse que vivemos uma época de indiferença em relação ao pensamento. É que a velocidade da revolução tecnocientífica é tão grande que o pensamento simplesmente não consegue acompanhar as transformações. Isso é o que sempre digo quando querem me empurrar uma novidade tecnológica. Quando finalmente consigo ler o manual e aprender as funções básicas do novo e milagroso aparelho-feito-para-facilitar-a-vida, ele já está obsoleto há tempos. Então sobra o problema do descarte, de onde jogar fora bateria. E ninguém diz como varrer os neurônios que vão caindo pela casa. Eles ficam lá, grudados no rodapé, pedindo um aspirador de ultima geração, daqueles que desintegram os ácaros e de brinde esterilizam sua aura. Custam cinco mil reais, podem ser pagos em dez prestações e você ainda concorre a uma expedição antropológica.”

Um bebê não pode ser devolvido ou jogado fora. Ele deve ir contra tudo que acontece ao nosso redor. A velocidade da tecnologia aqui aparece como um dos fatores que afastam os seres humanos não só das suas relações afetivas, mas de se pensar enquanto responsável por outra criatura. Como se fosse imprescindível termos em casa um micro-ondas, um lava-louça ou qualquer outra coisa que faça algo por nós ante a uma criança que pode nos fazer presentes nesse mundo, onde o importante é correr contra o tempo e não viver.
Porém, como dirá a narradora: “A vontade é livre mesmo que você não a identifique”. Não somos obrigados a coadunarmos contudo que nos sugere o mercado ou a sociedade. Podemos viver como desejamos, mas, antes de tudo, existe a pressão sociológica que aparece, principalmente, na sua forma religiosa.
São esses os questionamentos que vão se desenrolando por todo o romance, dando voltas em assuntos filosóficos que nos levam quase a “uma viagem filosófica ao centro do útero”. Essa viagem, portanto, nos levará ao final do livro, que mesmo cheio de certezas ainda conterá, adivinhem, dúvidas. E esse paradoxo, fica cada vez mais explícito quando vamos, finalmente, percebendo o quão difícil é ter um filho:
Carlas Muhlhaus
“O que mais a apavorava, no entanto, era o tamanho do seu paradoxo. Apesar de todas essas questões, não tinha mais dúvidas de que realmente queria ter um filho. E quando pensava nisso tinha uma vontade quase irresistível de se internar por conta própria. Aí sim não ofereceria nenhuma resistência. Soltaria os braços, relaxaria o corpo e entraria leve e lânguida numa camisa de força branca e limpa. Abriria a boca cordata e engoliria, muito obediente, todos os comprimidos a ela endereçados. Dormiria profundamente como um bebê.”

Como notamos, se não havia mais dúvidas porque desejar se internar? Porque não se decidir frente aos problemas que viriam com o nascimento de um filho? O leitor pode acreditar que o livro seja feito para mulheres, até mesmo porque eu pedi, no início desse texto, que se colocasse como mulher. Talvez até o seja, mas acredito que a Literatura não tem sexo e por isso digo que esse livro é para que possamos entender por quais algumas dificuldades existenciais a mulher passa quando deseja ter um filho. O que Mühlhaus quer levantar em seu texto não é apenas o desejo de ser mãe ou o desejo de “se tornar mulher”, como se tudo isso fosse apenas as mil maravilhas. Mas deixar claro que ter um filho não é tão fácil como imagina a sociedade, como os homens imaginam que seja. Não é apenas a transformação no corpo que as incomoda (algo que nem é tocado na obra), mas que o psicológico, o ato reflexivo sobre isso é o que acaba por deteriorar uma mulher sobre ter ou não ter um filho e que muitas vezes a mulher, não aguentando a pressão envolvida pelas esferas tocadas aqui, vê-se na obrigação de ter um filho. Daí, a velha, que não conseguia acompanhar os pensamentos de Foucault e de alguns outros, que queria se internar mesmo quando possuía certeza do que fazer, que ao ouvir o marido dizendo que estava tudo bem ou a terapeuta “forçando” que ao ter o filho nos braços tudo mudaria, punha a se imaginar nos textos filosóficos que havia estudado, trazia consigo, agora, a sua própria filosofia em construção, e que tinha por base o pensar para poder entender um pouco sobre a sua dorida experiência e pensar, concluiu, não é era nada simples:
“Sêneca ainda não ouvira falar de Heidegger, mas já sabia que pensar é algo violento antes de ser algo libertador”.