25 de agosto de 2013

Quando as letras têm a cor do sonho, de Kelson Oliveira


Vez por outra chega pelo correio algum livro de presente e que me ponho, sempre, calmamente, a folhear. Gosto de sentir o papel na ponta dos dedos, de olhar para a capa como se fosse um quadro e de cheirar o miolo do livro. Sempre achei que o livro tem vida, mais do que possamos acreditar.
Às vezes, empolgo-me com as primeiras frases ou os primeiros versos e já me ponho a ler, mas, vez por outra, apesar da vontade e do prazer das primeiras linhas, coloco-o num local à vista para que tão logo eu possa voltar à sua leitura. Mas são tantos os livros que temos em mente para ler e temos tão pouco tempo para tal que alguns vão acabando sendo deixados de lado. E isso, quase sempre, acaba comigo.
Lendo José Saramago, em O ano da morte de Ricardo Reis, eis que descubro um pensamento que vai de acordo com o meu penar:
“Um homem deve ler de tudo, um pouco ou o que puder, não se lhe exija mais do que tanto, visa a curteza das vidas e a prolixidade do mundo. Começará por aqueles títulos que a ninguém deveriam escapar, os livros de estudo, assim vulgarmente chamados, como se todos o não fossem, e esse catálogo será variável consoante a fonte do conhecimento aonde se vai beber...”.
E como todo livro me é um livro de estudo, resolvi deixar à vista o livro de Kelson Oliveira, muito bem intitulado de Quando as letras têm a cor do sonho. Um livro pequenino, de capa com fundo branco e uma imagem que seria, talvez, um homem-borboleta, como se tivesse sido pego de surpresa no café da manhã ou no almoço, quem sabe, e que de repente alçasse voo, como muitas vezes alçamos ao ler os livros de poesia.
Imaginação não falta ao autor, que em sua introdução nos revela que o livro partiu de um sonho que durou 40 dias e 40 noites e que era, ele mesmo, Ali Babá. Em todos os sonhos, algo peculiar acontecia com cada ladrão e de repente, ainda sobre os efeitos do sonho, acordava com uma imagem em mente. E quando avançamos, deparamo-nos com uma breve notificação do poeta, que avisa:
Esta página não é página
É porta de papel
Não bata para ir além
Não chame nem se apresente
Só aceitamos a entrada
De pessoas pueris
É nítido, ao menos para mim, que o autor deseja apenas pessoas que saibam se desprender dos valores que a sociedade nos condiciona enquanto adultos. Só é permitida a leitura por pessoas que ainda possuem na memória as imagens da infância ou que através do hábito da leitura conseguem, minimamente, se ter criança, pensar criança.
Em seus poemas, passamos a entender por qual motivo somos advertidos. Por todo o livro, percebemos a pureza da infância como fator primordial para a imaginação do que encontramos em Quando as letras têm a cor do sonho. E a culpada disso tudo, para que o livro tome forma, para que os mundos se criem, fora a mãe que lhe servira metáforas quando tentou iniciar o voo:
No início a mãe serviu metáforas no seu prato,
e ele comeu
Depois a namorada deu-lhe a simplesa embrulhada,
ele abriu e riu
Enfim, o maravilhoso pouso sobre suas asas,
E só então ele se sentiu poeta (Pouso, p.16)
Sentindo-se então poeta, resolveu alçar voos mais longes, inteirando-se do que acontece no mundo, principalmente com a Natureza, que tem ares, às vezes, psicodélicos:
Os minutos foram passando, passando...
Tanto que eu vi o céu amadurecendo,
como também a minha vida
Mais tarde,
na hora do namoro na calçada,
estrelas cadentes despencavam na terra
desejando ser frutas de pomar (Psicodélico, p. 26)
Aos poucos fui sentido algo na escrita de Kelson Oliveria que me fez lembrar outro poeta e que também tem presença marcante da infância em sua obra: Manoel de Barros. Porém, não sei se Kelson leu tal poeta e nem sei se o tem como ponto de referência para a sua escrita. Acredito que a maneira de imaginar dos dois poetas, pueris, é que me fez crer que essa relação exista.
E lembrei-me de Paul Valéry, quando tratando sobre a influência, afirmou: “A obra de um recebe no ser do outro um valor totalmente singular”. E é esse valor singular que o poeta de Limoeiro do Norte, escondido no interior do Ceará, nos mostra. Não quero aqui afirmar que Kelson tentou imitar Manoel de Barros, pois parto também do princípio de Jorge Luís Borges, quando escreveu o texto Kafka e seus precursores, onde afirma que quem reconhece a influência no novo autor é o leitor. Sou eu o responsável, portanto, em afirmar que o novo autor, Kelson, recebeu influência de Manoel, isso se deve a minha carga de leitura.
Mas nada disso impede que os sonhos representados nos poemas de Kelson sejam únicos, que sejam seus. Diferentemente de Manoel de Barros, o poeta cearense parte de si para tornar-se criança, culpa da mãe e da namorada que o fizeram primeiro tornar-se poeta. E aqui está o diferencial: é só a partir dessa transformação que pode, talvez, o poeta escrever de maneira pueril, sem sofrer sobre os preceitos que vive. Cria então imagens pueris, as quais só poderiam ser imaginadas por crianças. Seria o poeta uma criança a brincar com as palavras e imagens ou somente enquanto poeta é que podemos criar imagens que possam se equivaler às que criam os pequenos homens?
Essas imagens, mundos, que criamos muitas vezes nos sonhos, dizem os cientistas, ocorrem em preto e branco. E por mais que forcemos a imaginar o colorido em sonhos o que vemos é o negrume da imaginação, apenas em dois tons. Mas no livro de Kelson Oliveira, o mundo que nos aparece, infantil, traz as cores que desejamos e pintamos enquanto crianças. Talvez por isso os poemas sejam acompanhados de imagens que foram pintadas, aparentemente à mão, por um menino de oito anos.
E isso tudo faz parte de um homem ambicioso que quis inventar outro tempo, ou que quis trazer à tona um tempo esquecido na memória, apenas.
Para um homem tão ambicioso pelos pequenos
Momentos alegres
(significantes de toda a felicidade essencial)
Os dias fatigados de horas não satisfaziam
Era preciso descosturar esse dia-a-dia
Morar à beira de um rio
Adquirir um gato azul
E inventar um outro tempo (Invenção, p. 71)
E essa criação é buscada através da composição das próprias palavras que se manifestam contra o nosso amadurecer:
Quando eu ia andando de ônibus
olhei pra cima e achei o céu bonito
Estiquei o braço,
puxei três nuvens doidas pelas pontas
e amarrei na janela do ônibus
O motorista não gostou do que fiz
Mas não me importo
Adulto não entende nada! (Invenção, p,38)
Porém, esse amadurecer que não busca o poeta enquanto fazedor de sonhos, de metáforas, parece não perceber que ele mesmo não consegue se permitir pensar constantemente como criança. Parece-me que há momentos em que lembrando, quem sabe, da namorada, admite que a presença do amor é essencial para a que a escrita aconteça e principalmente que os sonhos tenham cores:
Quando te escrevo poesia
Em qualquer dia
De qualquer formato
Sobre qualquer coisa (um livro, um jarro, um pássaro...)
Nada mais intenciono
A não ser musicar
As constelações de sonhos que se movem dentro
De mim (Quando te escrevo, p.53)
Ou:
Faço um poeminha para meu amor,
Um haicai
Depois uma poesia maior
No outro dia um conto,
um romance,
uma obra incompleta,
outra completa...
Tudo isso também é fazer carinho,
E todo sincero ato de carinho é um pedido de felicidade (Escritos, p.79)
Ao meu entender, o que busca uma criança além de ser feliz? Só o sorrir com dentes de leite é o que é importante para ela. Essa felicidade vai se perdendo aos poucos, como falaria Leminski em um vídeo pouco visto, por causa do nosso tecnicismo, da nossa “velhice”. Vamos não apenas deteriorando a nossa epiderme, mas a mente. Vamos deixando para trás os sonhos coloridos e admitindo que todo sonho, como querem os cientistas, seja preto e branco. Por isso o autor-adulto deseja a metamorfose. Por isso é crucial a presença das pessoas que o amam, que o entendem e que percebem que para ele é necessário encontrar a felicidade novamente. E isso só poderá ser realizado enquanto “puro”. Daí entende-se que esse autor-adulto está perdido, num gigante pesadelo, onde o desespero já o tomou quase por completo. E o que lhe resta? Apenas sonhar enquanto criança, o poema é a esperança de “um monte de diversão...”.
Então o aprendiz de fraseador olhou para a criança
e perguntou:
– Você sabe pintar um sonho no papel?
E ela respondeu de prontidão:
– Sei, quer que eu pinte?
– E se eu quiser, o que você vai colocar na pintura do seu sonho?
– Ah! Eu vou colocar um monte de diversão...