7 de maio de 2013

Sobre Cartas a Nora, de James Joyce, ou Em face da última leitura, por Rebeca Xavier


por Rebeca Xavier


Oh ! sejamos navegantes,
bandeirantes e guerreiros,
sejamos tudo que quiserem,
sobretudo pornográficos.
(Drummond)



Eis que, uma vez envolvido pelos versos de Drummond, ele aponta a pena diretamente para a virilha do leitor e o convida lascivamente para ser pornográfico, (docemente pornográfico), e, já enredado e devidamente embriagado, o leitor cede. Ao ler as cartas que James Joyce escrevera a sua mulher, Nora Barnacle, organizadas no volume Cartas a Nora, somos invocados igualmente a ceder a essa pornografia cotidiana que nos aproxima e nos afasta em mesma escala da realidade da nossa própria carne.
Finjamos, pelo curto espaço dessa leitura ao menos, que hoje não é o dia que se apresenta, mas 16 de junho – o dia que J. Joyce escolheu para ser o dia de Molly Bloom (Bloomsday). E, dessa maneira, nos coloquemos no lugar do leitor de Drummond, que, verso após verso, se permite embriagar pela atmosfera. Porque, da mesma forma, partindo do dia 16 de junho de 1904, carta após carta, J.J. (ou Jim, como assina intimamente) se embriaga e se envolve pela jovem de olhos azuis que conheceu em Dublin, pela “flor azul-escura molhada de chuva”, por seu “pedaço da Irlanda”.


Sem se preocupar com correções gramaticais, o jovem escritor J.J. endereça um bilhete a uma moça que havia conhecido rapidamente, cinco dias antes, e com quem havia marcado um encontro, ao qual ela não compareceu.

Devo estar cego. Olhei para uma cabeça com cabelos castanho-avermelhados durante um bom tempo e decidi que não era a sua. Voltei para casa desolado. Gostaria de marcar um encontro, mas talvez isso não lhe agrade. Espero que você seja muito amável comigo para marcar um – se você não me esqueceu. (p. 29)

No dia seguinte, o encontro aconteceu e deu início à história amorosa entre James e Nora. Esse foi o dia que ficou eternizado no romance Ulysses– cuja publicação teve muito do suor de Nora, pelo que se pode compreender das cartas enviadas na mesma época – como o Bloomsday.


A história dos amantes, bem como seus ciúmes intimidades saudades carícias, ficou eternizada nas cartas que trocaram cada vez que se encontravam distantes. Nora não escrevia muito, o que causava certa angústia em J.J., no entanto, quando o fazia, instigava pensamentos intensos e carnais, deixando que a saudade se mostrasse como um processo físico também. Os tradutores Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante organizaram essas cartas (as de J.J., pois as de Nora se perderam no tempo, restando apenas algumas, anexadas no final do livro) em três grupos – “Dublin (1904)”, “Pola, Roma e Trieste (1904-1912)” e “Paris (1924)” – e, através delas, o leitor acompanha a vida do casal sob a ótica muitas vezes distorcida pela desconfiança ou pelo sentimento extremo de Joyce. O primeiro bloco reúne as cartas enviadas à Nora do momento em que o casal se conheceu à decisão de irem morar juntos longe da Irlanda, o que levou pouco menos de um ano. O romance se intensificou rapidamente, tornando Nora o “pequeno pedaço de Irlanda” de Joyce, ao qual ele iria se apegar durante toda a vida de maneira ambígua com relação à própria pátria: ele odiava tudo o que dizia respeito à Irlanda, no entanto, pegava-se à Nora como fosse ela sua pátria – ou ao menos um pedaço dela, como dizia.

No segundo e terceiro blocos estão as cartas que montam, cronologicamente, as viagens que J.J. fazia a negócios e registram os momentos de dificuldade financeira – que foram muitos – pelos quais o casal passou junto com os filhos. Até então, as intimidades são comentadas apenas de maneira rápida, sem clareza para olhos estranhos; é durante uma das viagens à Irlanda, que a saudade física começa a ser relatada, instigada pelas cartas de Nora. As cartas, então, trazem uma pornografia cotidiana, dessas de quatro paredes. dessas necessárias. dessas humanas.


O bom de ler cartas não é nem o fato de serem reais (como se estivéssemos participando, ou melhor, inseridos num diálogo casual, no pensamento corriqueiro, na parte mais intensamente humana dos nossos escritores preferidos – meio que os torna reais), claro que é um dos grandes motivos – o segundo maior, ouso –, mas tem muito mais a ver com aquela coisa da maneira de escrever. Como dizer? A carta, principalmente entre amantes, dispõe de uma informalidade carinhosa que só pode ser alcançada quando conversamos com os nossos; a narrativa, por mais que se assemelhe à realidade do diálogo desconexo de pessoas pares, não possui essa atmosfera de intimidade de lar, de quarto... são antes como a sala à meia-luz do psicólogo, forjando o conforto e nos obrigando o estar à vontade.

No entanto, surge sempre uma dúvida quando se trata da publicação de obras póstumas, diários ou cartas: Se o autor era tão cioso de uma privacidade epistolar – e sendo J.J. tão movido pelas sensações em sua vida íntima, como dá a entender pelas cartas que envia à mulher), teria ficado angustiado ao saber da publicação?






Fonte: JOYCE, James. Cartas a Nora ; organização, apresentação e tradução Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante. – 1. ed. – SP: Iluminuras, 2012. 128p.
Onde encontrar: Livraria Cultura ou Saraiva (R$38,00)