28 de março de 2013

Paris-Curitiba

por Miguel Sanches Neto


O conto que abre o livro Mistérios de Curitiba (4ª. edição, Record, 1979) atualiza uma linguagem bíblica, ou melhor, apocalíptica. Nestas “Lamentações de Curitiba”, o sujeito do discurso se aproxima de Jeremias, que descreve o estado deplorável de Jerusalém e da Judeia. O texto é uma queixa e um anúncio do destino fatal de uma cidade maldita: “Teu próprio nome será um provérbio, uma maldição, uma vergonha eterna”.
O conto relata a iminência de um juízo final que devastará a cidade. Ao longo do texto percebemos que os verbos que definem a situação da urbe estão no presente ou no futuro, destacando assim o que a cidade é e o que será depois do advento. No penúltimo parágrafo, no entanto, há um rompimento dos prognósticos para dar-se o anunciado: “A espada veio sobre Curitiba, e Curitiba foi, não é mais”. Na verdade, a urbe se tornou passado e esse fato salienta uma ruptura temporal que ajuda a entender o volume todo. A Curitiba de Dalton, objeto destas histórias, passa a ser aqui a de um tempo ido. Uma cidade que ficou esquecida num pretérito morto.
O último parágrafo do conto estende este momento às cidades circunvizinhas. Também elas fazem parte desta Curitiba transmunicipal que abarca outras comarcas. A imagem de uma urbe destruída pela espada do anjo vingador tem uma correspondência nítida com outro texto do volume: “Em busca de Curitiba perdida”. A ausência do artigo /a/, que tornaria definido o objeto desta rememoração, mostra que se está atrás de algo que não é bem determinado. Em ambos os contos sobressai uma cisão temporal entre a urbe de outrora e a de agora. Desdenhando esta, o narrador concentra a sua atenção na outra. A divisão de uma cidade em dois tempos se desmembra em sua multiplicidade geográfica. O narrador diz: “Não viajo todas as Curitibas” (p.86), o que equivale a conceber a cidade como manifestação de várias realidades que caracterizariam diversas camadas urbanas.
Rompendo com a próxima, com a convencional, com a Curitiba para turista, Dalton busca, como disse Walter Benjamim, dar “um salto de tigre em direção ao passado”, recolocando em circulação uma imagem dos esquecidos e dos perdedores.
É nesse sentido que devemos ler os mistérios da vida desses habitantes do lado desprezado da história. A Curitiba misteriosa não é a dos temas do ocultismo, mas a da realidade ocultada por uma visão estereotipada, de fachada, que tenta vender uma falsa ideia de convivência pacífica, paradisíaca, tal como faz o mito provinciano da “cidade sorriso”.
As histórias não são misteriosas. O enigma, se é que existe um, está justamente nestas relações humanas marcadas por uma ausência completa de salvação. No mundo ficcional de Trevisan não existe redenção possível. E, ao relatar isso, de maneira tão incisiva e contundente, o autor quer minar nosso orgulho periférico de civilizado.
Mistérios de Curitiba é o primeiro livro em que Dalton atinge uma síntese tão acentuada. Estas histórias curtas não implicam só em uma economia verbal, ou seja, não são apenas uma opção estilística, mas tem em mira plasmar formalmente a própria pobreza de um mundo. O vazio dessas vidas é captado através do vazio verbal de narrativas lacônicas.
Tal brevidade faz com que o conto se limite com a crônica. Recordemos aqui o antigo nome de uma antologia fora de comércio: Crônicas da Província de Curitiba, onde percebemos os ecos de Bandeira, autor das Crônicas da Província do Brasil. Os mistérios curitibanos são pensados em função do deslocamento geográfico. Este volume, que dialoga com Os mistérios de Paris, de Eugene Sue, perde o artigo definido e destaca a periferia. Trata-se da desleitura de uma obra que nasce sob o signo da cultura de massa, classificada por Umberto Eco como vendedor de emoções que especula sobre a miséria humana. Livro que incorpora uma visão satânica, explorando situações mórbidas, o horrível e o grotesco, Os Mistérios de Paris “revelam ao leitor condições sociais iníquas que produzem, através da miséria, o crime. Se se atenuar a miséria, se se reeducar o presidiário, se se arrancar a jovem virtuosa ao rico sedutor, o operário honesto à prisão por dívidas, dando a todos uma possibilidade de redenção fundada numa ajuda cristã fraternal, a sociedade poderá melhorar. O mal é apenas uma enfermidade social. Começado como epopeia da gatunagem, o livro termina como epopeia do trabalhador infeliz e como manual de redenção” (Apocalípticos e Integrados. Perspectiva, 1976, p.187). Dalton vai renegar as intenções moralizantes e os fins comerciais que orientam Sue e escrever um livro que coloca em cena personagens de um submundo, mas sem nenhum interesse de defender ou acusar, nem de propor saídas para os problemas sociais.
As suas narrativas desvelam uma realidade apertada pelos muros municipais. Seus personagens fazem parte de uma esfera agrícola ou ocupam pequenas funções: donos de secos e molhados, secretários de clube de futebol de bairro, entregadores, donas de casa... A diversão desta gente é basicamente provinciana: circos, onde cachorros vadios atrapalham o espetáculo, festas de igreja e visitas ao Passeio Público. O cenário se opõe ao de Paris. Se no primeiro título desta coletânea, Dalton, dialogando com Bandeira, destacava o prosaísmo da vida na província, no título definitivo a mesma tensão é mantida a partir do deslocamento Paris-Curitiba.
Em vários contos surge o fantasma do insulamento. Este é um dos temas caros a Trevisan, desde os tempos da Joaquim. A ausência de vias de comunicação com o resto do mundo fica sugerida através do comentário sobre a não existência de rio sob a Ponte Preta (em “O Rio”): “A Ponte Preta anuncia o rio que não corre em Curitiba”, ou da odisseia imaginária que o comerciário José faz, experimentando no bonde, as contradições entre a imaginação e a realidade, respectivamente representadas pelos perigos de uma viagem marítima por regiões estrangeiras e pela sua volta pacífica ao lar no fim do expediente, ou ainda através do desejo de André que, na ausência da mulher, quer ver o mar – desce a serra mas, depois de embebedar-se e de ser roubado pelas meretrizes, volta a Curitiba sem contemplar a imensidão das águas, contentando-se apenas com alguns minutos na banheira (“Homem ao mar”).
Este bloqueio geográfico corresponde ao isolamento do próprio indivíduo numa sociedade em que o inter-relacionamento é sempre problemático. Isto fica evidente na linguagem dos personagens. Vários contos manifestam a dificuldade de comunicação. Dominando um vocabulário amputado, eles expressam seu mundo e narram suas vidas de uma maneira lacônica e repleta de lugar comum. Ao nos apresentar as histórias sob o ponto de vista e/ou na voz desses personagens, Dalton se retira da narrativa, tornando-a um encontro direto com a realidade omitida – embora possamos, em determinados momentos, como no conto “Em busca de Curitiba perdida”, ouvir a voz do autor. A dificuldade de comunicação e a expressão direta de pequenos dramas gigantescos ficam nítidas nas narrativas em forma de carta, que aparecem com frequência em Mistérios de Curitiba.
Sem uma linguagem própria, os personagens escrevem como quem copia modelos de missivas. Isso faz emergir o problema de uma mensagem postiça. Os produtos destas cartas são cômicos porque põem a nu a cristalização de um código. Assim, em “Carta escrita no escuro”, a amada tenta exprimir o desespero causado pela falta do amante. Ela vai à sua casa, não o encontra e, depois de muito esperar, deixa uma carta que fala de sua aflição. Mas tudo se revela fingimento quando a mulher, num lugar comum de correspondência, pede para que o amante não repare na letra, pois escreve no escuro. Ora, num momento de desespero não se pensa na beleza da caligrafia. Isso delata o caráter convencional e, portanto, falso dessa carta de aflição.
Em “Pedro”, uma ex-amante, em apuros financeiros, escreve ao seu protetor. Já começa copiando o modelo: “Pedro, pego na pena com a mão trêmula, me desculpe a liberdade destas mal traçadas linhas”. Mas, das cartas, a mais bela é a intitulada “Apelo”. O marido escreve para pedir a volta da mulher que o abandonou. É significativo o fato de ele não dizer que a ama, embora a carta, implicitamente, queira convencer a mulher de que o marido está com saudade. Não é, todavia, uma mera carta de amor. Ele confessa a sua maneira de gostar e a razão de sentir a sua falta: “Acaso é saudade? [...] Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Volte para casa, Senhora, por favor”. A mulher é valorizada pelo seu serviço e isso fica sugerido pela forma de tratamento. É chamada de “Senhora”, ou seja, é vista como a dona de casa – embora, ironicamente, lembre o tratamento dispensado pelos poetas trovadorescos às suas amadas.
Em “Ladainha do amor” também aparece o estereótipo: “João, em primeiro lugar desejo que estas poucas linhas vão te encontrar com saúde e felicidade, eu vou bem graças a Deus”. Carta com uma pontuação inadequada, com excesso de vírgulas, e uma abundância de pequenos períodos que amalgamam assuntos, esta correspondência revela ser, no final, o pedido de um retrato para um trabalho que una os dois novamente. O conto se torna risível pela linguagem monocórdia e pelo atropelamento das ideias de Maria.
Personagens encenando toscamente um papel que não se lhes ajusta, as cartas desvelam ainda a representação de um grupo social pela linguagem. Dalton, como um bricoleur, está se valendo da apropriação de uma linguagemkitsch, a dos correios sentimentais, para tirar dela, usando-a com intenções satíricas, ressonâncias novas. Com cenas líricas, dramas e linguagens recorrentes, violência narrativa (estilística e temática), ele recicla os mistérios que jaziam em esquecimento. As conclusões a que chegou o escritor cubano Cabrera Infante em seu romanceTrês Tristes Tigres podem definir esta opção de Trevisan: “Penso que melhor do que a lembrança involuntária para captar o tempo perdido é a lembrança violenta, irreprimível”.
NOTA
O texto O labirinto da solidão foi publicado primeiramente no jornal A gazeta do povo, em 16 de junho de 1994 e disponibilizado no site Herdando uma biblioteca, do escritor Miguel Sanches NetoA republicação no LiteraturaBr faz parte de um acordo entre esses dois veículos.