13 de março de 2013

O labirinto da solidão


por Miguel Sanches Neto

O primeiro livro de circulação comercial de Dalton Trevisan (Novelas nada exemplares, 1959 – 5ª., Record, 1979) reúne uma produção de duas décadas e, se marca a estreia do contista num âmbito nacional, não é, por outro lado, um livro de iniciante. O escritor já está maduro, possui um estilo pessoal, o que o faz senhor de um novo universo. Mesmo sendo o primeiro (se, como o autor, renegarmos as publicações fora do mercado), este livro o transforma numa grande revelação. A sua novidade acabou desencadeando um preconceito em relação à sua obra posterior: criticam-se os demais livros e, a cada nova publicação, as críticas se intensificam, em função de o autor continuar circulando dentro daquele universo matinal. Por isso se diz queNovelas Nada Exemplares é sua melhor obra.


Que é um grande livro, quanto a isso não há dúvida. Mas não por ter se constituído, em um momento literário saturado pela mesmice, numa renovação estilística e temática. A grandeza do volume está na construção magistral de histórias que demarcam o campo de ação deste escritor. Deixando de lado as análises estilísticas, que têm sido as mais recorrentes no estudo da obra de Dalton, quero me ater a uma leitura que persiga um sentido global para o livro. Creio ser possível estruturar meus comentários no eixo da solidão.
Se tomarmos como exemplo o conto “Pensão Nápoles”, poderemos vislumbrar um retrato bem nítido da relação entre a província e o resto do mundo. Chico é um escriturário que gasta a vida às margens do Rio Belém, passando de uma pensão a outra. Vive a esperar algum tipo de contato com a Europa. Mesmo sem ter nada que o ligue a ela, indaga ao carteiro: “Alguma carta de Nápoles?”. O seu drama é o do jovem que anseia pela vastidão do mundo e acaba ligado à estreiteza da cidade pequena. Em vez de partir, ele fica noivo e apenas muda de pensão. Levando em consideração que, na década de 1940, tempo próximo da narrativa, a Europa foi o palco de grandes acontecimentos (Segunda Guerra Mundial) que atraíram a atenção do mundo, percebe-se que Chico se dilacera com a impossibilidade de participar da História. Totalmente isolado na província, o personagem vive um drama que ultrapassa a esfera pessoal. A sua solidão é a de toda uma geração que se sente desligada dos acontecimentos. Enquanto o mundo vive traumas imensos, o jovem provinciano continua levando a vidinha comum de sempre. E é por isso que o personagem faz comparações: “– Na minha idade, já viu o que Alexandre Magno...”. Ao se contrapor a Alexandre, o Grande, Chico (o próprio nome expressa o seu anonimato) sofre com o abismo entre os dois destinos.
Cabe-lhe, ironicamente, morar na Pensão Nápoles. O desejo de partir acaba conduzindo-o a um local que é, apenas na fachada, a solução irônica para o seu problema.
No conto, a oposição entre centro e periferia se desdobra em duas outras: a grandeza de Alexandre versus a mediocridade da vida do jovem, a História (e os seus sentimentos épicos)versus a banalidade do cotidiano. A culpa é de Curitiba, que está isolada do resto do mundo. Não tem mar (ou seja, não tem vias de acesso) e sofre o insulamento sufocante simbolizado pela irrelevância do Rio Belém, que só traz doenças aos moradores.

A imigração pode servir como uma resposta para a situação desenvolvida nestas “novelas”. Sendo o Paraná, e Curitiba em especial, um lugar de colonos, com forte influência principalmente dos italianos, dos quais o autor descende, os confrontos bélicos avivam nesses personagens a vontade de participar do destino da pátria anterior. Eles se sentem amesquinhados por este deslocamento geográfico. Logo, a solidão das pessoas tem uma simetria explícita com o isolamento da periferia. (Não posso deixar de mencionar que a opção de retratar estes seres fora da História e a banalidade de suas experiências, num período caracterizado pelos grandes acontecimentos, é responsável por uma parcela do tom provocativo do livro, já expresso no próprio título).

Os personagens solitários buscam no casamento a saída para o seu drama. Mas acabam criando uma situação mais dramática ainda. Que é a do inferno conjugal. Embriaguez, pederastia, farra, traição etc. são as saídas experimentadas por esses seres que vivem a falta de qualquer perspectiva. A prisão, para uns (como João Nicolau), é apenas a institucionalização deste insulamento que todos sentem.
Outro elemento relevante para tentar caracterizar o volume é o tema do filho e do marido pródigos. As mulheres estarão sempre esperando os seus homens – primeiro o marido, depois também o filho. Eles saem para viagens diárias, aventuram-se por territórios proibidos às fêmeas, experimentam o sabor noturno da vida, mas sempre voltam. Essa fuga do teto familiar também é uma tentativa de ludibriar a solidão, que acaba fazendo com que as mulheres vivam em constante espera. Dalton vai, assim, caracterizá-las como degradadas penélopes. Esta é outra imagem central para a análise do livro. Várias mulheres gastam o seu longo tempo de espera desacompanhada fazendo toalhinhas de crochê. Gostaria de destacar, como os melhores exemplos, dois contos: “Ponto de Crochê” e “Penélope”.
Naquele, a mulher tenta unir imagens fragmentadas de sua vida tal como ela tece a toalha. Os pontos e as lembranças se misturam, num ritmo frenético de artesã experiente. Quando alguma imagem problemática surge, ela erra o ponto. Ao tentar compor uma peça, busca também um domínio sobre o seu mundo. O drama é que não pode manipular os fios do destino com a mesma segurança com que trabalha sua tecelagem. O crochê é o seu passatempo, a sua distração para não se entregar à solidão ou a pensamentos menos puros, mas não deixa de ser uma maneira de tentar dar uma forma mais articulada para a sua vida. No entanto, em última análise, ela faz crochê para esperar o novo Ulisses que, solto do mastro, se deixa seduzir por todos os cantos de sereias.
Em “Penélope”, um casal de velhos, com o amor amortecido pela rotina, é bombardeado por cartas que põem em questionamento a fidelidade da esposa. Enquanto o velho se deixa atormentar pelas cartas anônimas, que sempre trazem as mesmas duas palavras (elas não nos são reveladas, mas só podem ser corno manso), a velha tece sua toalhinha. A discórdia é criada e nossa Penélope não faz nada contra os pretendentes que só existem na imaginação do velho. Ela espera o retorno do marido, não o seu retorno físico, porque ele está sempre ao seu lado, mas o retorno do companheiro que ele fora. A mulher se mata assim que termina a sua toalhinha, representação da mortalha do texto homérico. Após o enterro, o velho volta ao lar, acompanhado pela solidão. Justificando-se, também com duas palavras, tal como nos bilhetes: “fui justo”. Uma nova carta, no entanto, foi enviada. Ele não a pega – agora, com a morte da companheira, nada pode atormentá-lo.

Para fugir deste destino passivo de Penélope, algumas mulheres enlouquecem, outras arranjam amantes ou abandonam o lar.
O relacionamento interpessoal acaba se revelando uma ilusão para os que fogem da solitude. E cada um se apega a alguma coisa para enfrentar essa condição de órfão. Como o jovem distinto (“A velha querida”) que procura uma prostituta idosa para purificar-se ao experimentar do sórdido. Os personagens buscam sempre soluções paliativas para suportar um destino inquebrantável, em que o filho repetirá o périplo paterno. As pessoas, presas a esse carrossel vertiginoso, continuarão tentando o impossível: alcançar o outro para tornar o percurso menos solitário.
Os dois únicos contos que se passam fora de Curitiba, “Noites de amor em Granada” e “O autógrafo”, explicitam que o insulamento permanece. Naquele conto, o personagem sonha voltar para casa – a viagem como saída para o seu drama mostrou-se infrutífera; ele continua sentindo, mais do que nunca, a angústia do desenraizamento, condição de um homem colocado entre duas forças contrárias, como já notara Joaquim Nabuco. Diz ele que o que nos atrai na Europa “é a atração de afinidades esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos nós, da nossa comum origem europeia. A instabilidade a que me refiro provém de que na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva humana; e que na Europa nos falta a pátria, isto é, a fôrma em que cada um de nós foi vazado ao nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país” (Minha formação, capítulo IV).

No outro conto, a vida no Rio de Janeiro não elimina o que o personagem traz dentro de si. Suas experiências têm sempre um caráter póstumo e ele conclui que na metrópole as pessoas,desterritorializadas, são “náufragos na solidão das ilhas”. Estabelecendo esta simetria entre personagens e a província, podemos ler a história desta na daqueles, e vice-versa. Já aqui, a cidade é a protagonista.

A utilização de nomes carregados de História (Ulisses, Penélope, Alexandre...) como símbolos da vida desses seres anistóricos nos leva a pensar este livro como uma falsa epopeia (ou como uma epopeia do cotidiano), onde não existe um personagem que catalisa a grandeza de um grupo social. Na verdade, a periferia é retratada como uma imagem desta nossa época antiépica, em que os indivíduos isolados numa existência degradada figuram como ruínas.
Dessa forma, é possível dizer que Novelas nada exemplares é uma antiepopeia, onde Curitiba é a personagem central, representando o drama de seres ilhados em vidas de horizontes restritos.

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NOTA


O texto O labirinto da solidão foi publicado primeiramente no jornal A gazeta do povo, em 16 de junho de 1994 e disponibilizado no site Herdando uma biblioteca, do escritor Miguel Sanches Neto. A republicação no LiteraturaBr faz parte de um acordo entre esses dois veículos.