15 de fevereiro de 2013

O eu e o nós na poética de Carlos Aranha





por Bruno Gaudêncio

 “Eu já era /poeta solitário/ fazendo artigos/ como se fossem/ discos, filmes, canções/”.


O trecho do poema “Veja” contido na obra inaugural “Nós an Insight” (Linha d’água, 2011) de Carlos Aranha é revelador em diversos aspectos. Conhecido em todo o estado da Paraíba por sua militância artística, principalmente no jornalismo cultural, Carlos Aranha demorou décadas para publicar o seu primeiro livro. Esta ausência criou uma imensa expectativa por parte dos seus leitores diários e artistas que vêm observando, desde a década de 1960, sua atuação na produção de peças, discos e filmes, entre outras linguagens.

Carlos Aranha é um destes nomes que ainda mobilizam o cenário cultural da Paraíba na atualidade (em especial João Pessoa). Suas opiniões criam certas concordâncias e rejeições e são avaliadas sempre como posicionamentos coerentes, atuais e firmes. Aliás, como sua própria poesia e personalidade. Filho das vanguardas estéticas brasileiras, como o Tropicalismo e o Cinema Novo, Aranha vivenciou particularmente os movimentos culturais em seu estado, incorporando atitudes, discursos e imagens, que levaram a compor o seu repertório poemático.

“Nós an Insight” caracteriza-se pelo impulso poético do seu autor. Numa percepção “motora do instante”, Carlos Aranha deflagra uma hermenêutica própria de sua geração, marcada pela herança errante das vanguardas, em especial a tradição tropicalista (da qual Caetano Velloso se mostra como um guru inspiratório). Mas não é só isso. Quando se fala em inspiração ou diálogo emotivo e cultural, percebe-se claramente um “intercâmbio atemporal” com a poesia de Augusto dos Anjos.

A alusão dicotômica “O Eu / O Nós” é a espinha dorsal da gramática estética que nos apresenta Carlos Aranha. O “Eu de Augusto” absorve então os outros, numa poética sofisticada e madura, da qual referências “pop’s e cult’s” vão sendo apresentadas. Cada verso surpreende vindo como um signo rompido, alucinante, numa obra aberta (no dizer de Umberto Eco). Exemplo máximo da relação “O Eu/ O Nós” que podemos trazer de início é o poema “Nós”, que abre o livro:

NÓS
ao poeta maior: Augusto dos Anjos

A nossa luz há de brilhar ali.

Sem sombra, assombro.

Assumo o ser que somos nós.
Deus é ser de tom tamanho
que seu silêncio é som da nossa voz.

Nós reatamos nossos górdios nós
até rompermos o macho hímen criador.
Sutilezas, pós-Augusto, sempre sóis,
costelas adâmicas arrancadas com amor.

Our light:
Insught.

Besame mucho,
muitíssimo brilho.
Pós-hedônicos,
nos masturbamos à sombra do tamarindo
plantado num cemitério de Paris.

Voulez-vous manger avec-moi?
Algum poeta convidado para jantar?

Help me,
Ah, Socorro, como te amei...
Sapé, Campina Grande, Taperoá,
tudo, todos, tão sem distâncias.
O tamanho agora é um obelisco em holograma
e os anjos com Augusto,
numa cósmica lagoa,
falam dos poemas que você fez pra mim.

Pra mim? Pr'ocê?
Somos nós: um só ser
igual e iguais a Deus,
imagem retrospectiva,
semelhança introspectiva.

A nossa luz de brilhar ali.

       Outro dado importante na poesia de Carlos Aranha é o lado crítico, nunca contemplativo da realidade. A cidade de João Pessoa, as amizades culturais, os filmes, as referências estéticas, – nada passa sem um olhar avaliador, elucidativo, às vezes quase prosaico, como no poema “Yesterday’s apocalyse”, no qual sobram críticas ao formalismo e à hiperinterpretação por parte da crítica literária contemporânea.

Marca presente na poesia de Carlos Aranha é a “implosão das identidades”, em que os lugares, as culturas e as pessoas, numa maquinaria múltipla de referências, se dispersa, sem conexões aparentes.  Tudo numa interligação de artistas, filmes, peças, num culto à “diversidade do mundo”, presente especialmente no poema “Pra que Tant’identidade”:

A diversidade canta em seus versos
Porque a poesia
Quando se conflita
É mais que o vão voo da vida.(p.25)


Nesta incursão identitária, cabem poemas em inglês, memórias da repressão, cânticos de amor à cidade de João Pessoa, diálogos com artistas amigos, como o escritor José Nêumanne Pinto e a compositora Cátia de França, a afetividade sexual na presença festiva dos corpos. A universalidade artística em diálogo constante com a localidade cultural: “Meu espírito paira/ entre Nova York e Cruz das Armas” (p.80).


Todavia, acredito que, de todos os poemas, aquele que representa mais o universo poético de Carlos Aranha, neste seu primeiro livro, é “About me”. Demarcado por uma memória afetiva, o autor se despe num jogo de revelações pessoais, em que os lugares, os endereços de sua subjetividade ficam mais nítidos e lúcidos diante das incertezas do passado, do presente e do futuro.
About Me

Atlântica, 107.
Areia, 51.
Dom Adauto, 9.
Catete, 52.

Endereços sucedâneos;
velhos de guerra conterrâneos,
Eu, inteiro partido
de 64 anos,
filho de pai morto
aos 35.

Na infância, diziam
a mãe Antonieta:
"esse menino não se cria".
Na adolescência,
uma torcida para chegar
aos 25.

A ditadura sobre nós;
eu, Marcus, Vladimir, Eduardo
e outros tais,
chorando Edson Luiz e vários mortos
– conseguiria ser um "Anjo 
45?"

Endereços contemporâneos;
novos de guerra - subterrâneo;
Eu relendo Augusto
e por inteiro me perguntando:
o que será de mim
aos 55?

Números são eternos
como palavras de honra.
Da Paraíba vou ao Rio,
reencontro o ano não findo
e assim sonho
com o 95.

Se me perguntam 
quando estarei velho,
me fantasio de Bob e Zé:
a resposta vem com o vento
que sai de Lagos,
atravessa o Atlântico
e me encontra nu
como um rapaz,
com minhas letras, caras e músicas,
de Tambaú a Ipanema,
fazendo de números e endereços
as novas contas
de estar vivendo.

Mesmo tendo um traço prosaico, que muitas vezes se afasta da poesia, Carlos Aranha estreou bem, num livro forte e ousado, cheio de instantes marcantes. “Nós an Insight” é uma obra viva e reveladora, advinda de um poeta que não cabe dentro de si mesmo, que transcende as suas referências estéticas, os lugares e as culturas, numa corrida louca e interna entre o Eu e o Nós de cada dia.

Livro: ARANHA, Carlos. Nós an Insight. João Pessoa: Linha d’água, 2011.