2 de abril de 2018

O cometa é um sol que não deu certo.

Não é fácil falar sobre um livro infantil com camadas de significação, um contexto explosivo e uma história de outra cultura. Mas Tadeu Sarmento, autor do belo e tocante O cometa é um sol que não deu certo, premiado livro do concurso Barco a Vapor, é um sujeito com pés no chão e mãos na página. Seu projeto de escrita contempla o humano com uma linguagem sagaz, viva, com frases bem lapidadas e um senso de humor certeiro. Quem conhece outras obras do pernambucano agora radicado em Belo Horizonte já sacou. Tadeu é um viciado em escrever. Uma escrita assim não se faz do dia para a noite, como prova o acabamento de Associação Robert Walser para sósias anônimos, romance adulto editado pela Cepe e também premiado.

No livro conhecemos o personagem Emanuel e sua família de refugiados, além dos amigos Kalil, Nabir e Amal. O cenário opressor é conhecido dos noticiários, um grande assentamento onde famílias esperam pela chance do êxodo, fugindo da difícil vida de bombardeios e perseguições. Este não-lugar, provisório inferno, é o cenário onde Emanuel convive com o resto de esperança e em pequenas explorações, tanto na busca de alimentos e água quanto em manter uma precária rotina de brincadeiras, conversas entre seus amigos. Aliás, as conversas giram em torno das mesmas descobertas sobre o mundo – se o mundo ali não fosse tão severo, algemando liberdades no ir e vir.  É como é descrito em poucas palavras este universo que o leitor tem a sensação de uma ameaça ao redor: “Dentro do campo as pessoas também esperam. Aguardam ansiosas as portas do mundo se abrirem para recebê-las. Além do calor e da fome, da constante falta de energia elétrica e do racionamento de água, todos têm medo, vivem nervosos, estão cansados.” É o cenário.

Tadeu Sarmento consegue extrair momentos de afeto sob um céu de armas. Dentro do grupo principal sobressai a bonita relação entre a inquieta Amal, que diz que vai embora e não sai do lugar, e Emanuel (o nome em hebraico para a expressão Deus conosco). São nos diálogos bem construídos que notamos um jogo de aproximações sobre as coisas do mundo. Ante o olhar poético sobre o “mar ser um céu de ponta-cabeça” Amal provoca: “E onde estão as ondas?”. “As ondas são as  nuvens” responde Emanuel.  O outro cenário é a colina. De onde o ritual de soltar pipas, a necessidade de cultivar uma brincadeira. Mas as pipas trazem um problema e é pela entrada do velho Nair que conta sobre o uso das pipas para fins de guerra pelos chineses que faz soar o alerta em Emanuel sobre o perigo de usá-las naquele território.

Nota-se que em poucos capítulos O cometa é um sol que não deu certo dá ao leitor uma cartografia básica do jogo de relações entre refugiados e soldados (a administração, os servidores) em poucas pinceladas e alguns diálogos. Emanuel é querido pelo povo, faz graça, é camarada. Suas relações familiares são claras: o pai Youssef, a mãe, a irmã grávida que perdeu o marido num bombardeio. Mas o livro ganha dinamismo por cenas e leves mudança de rotina: o breve desaparecimento de Amal, o interrogatório dos guardas ao pai do menino e a dúvida se o episódio das pipas ganhou conhecimento pelos três guardas irônicos. Vem daí que por ameaça, a família de Emanuel ganha um ultimato: três dias para deixar o campo por colocarem em risco a segurança do lugar.

A prova de que um livro infantil nesta vertente tem muito a dizer também faz coerente a prática de um autor que encarou o desafio de contar algo dos acontecimentos recentes da atual história é a capacidade de, numa simbiose que funciona, tratar de questões bem humanas no que seria o inferno na terra, um campo de refugiados. Há também no livro um senso de tragédia iminente, e que o leitor mirim apenas toma conhecimento durante a leitura mas que ecoa ainda mais  para quem sabe que situações terríveis e individuais podem ganhar foros mundiais (o episódio do garotinho encontrado numa praia, afogado, é um ponto que é refletido nas linhas finais da história).

Para mais uma fruição dessa nova investida do Tadeu na literatura infantil, temos o artesanato lúdico das imagens (o título não é por acaso um bom exemplo), as comparações inusitadas “e sentiu arrepios no coração (..) como se tivesse febre ou uma aranha peluda e costureira o tivesse envolvido em uma teia de gelo” “E como o sol pode ficar no céu e dentro dos olhos da gente ao mesmo tempo?” “Nabir tem cabelos negros e ondulados, desses que serviriam para dar laços em caixinhas de música com a tampa quebrada”.

O cometa é um sol que não deu certo tem o raro equilíbrio de ser uma história bem contada com personagens que trazem no bojo uma cultura a ser descoberta, e dentro dela, os valores que se definem como universais: o desejo de liberdade, o valor da amizade, a busca por conhecimento e a resistência vinda de berço ante as forças opressoras da história. Vale muito a leitura.