7 de fevereiro de 2018

A poesia de Tarso de Melo

Tarso de Melo (Santo André. 1976) lançou os seguintes livros de poemas: A lapso (Alpharrabio, 1999), Carbono (Alpharrabio, Nankin, 2002), Planos de fuga e outros poemas (CosacNaify, 7Letras, 2005), Lugar algum (Alpharrabio, 2007, apoio da Bolsa Vitae de Artes), Exames de rotina (Editora da Casa, 2008) e Caderno inquieto (Dobra, 2012, apoio do PROAC/SP), reunidos no volume Poemas 1999-2014 (Dobra, E-galáxia, 2015). De seu livro mais recente, Íntimo desabrigo (Alpharrabio, Dobradura, 2017), foram retirados os poemas aqui publicados. É autor também dos estudos História da literatura em Santo André (Fundo de Cultura, 2000) e Direito e ideologia (Expressão Popular, 2009). Organizou diversos livros, entre os quais: Vidas à venda (com Eduardo Bittar; Terceira Margem, 2009), Cidades impossíveis (com Eduardo Bittar; Portal, 2010), Literatura e cidadania (com Reynaldo Damazio; Dobra, 2013, apoio do PROAC/SP), Subúrbios da caneta (com Reynaldo Damazio; Dobra, 2014), Outras ruminações (com Reynaldo Damazio e Ruy Proença; Dobra, 2014) e Para a crítica do direito (com Celso Kashiura Jr. e Oswaldo Akamine Jr.; Outras Expressões, Dobra, 2015). De autoria de Renato Russo, organizou The 42nd St. Band (Cia. das Letras, 2016) e O livro das listas (com Sofia Mariutti; Cia. das Letras, 2017). É advogado e professor, com doutorado em Filosofia do Direito pela USP.

 

Íntimo desabrigo

daqui ouço a voz dos seus talheres inúteis
seu colchão em que afundo a cabeça que já não me serve
chinelos sapatos passam sapatos chinelos pousam

daqui corto os pulsos em suas tesouras cegas
de suas facas o ferrugem escorre como lava como larvas
de pregos faço o castelo em que vai deitar minha hora

os calendários todos que a água podre funde à pedra
as pedras tortas que desaguam nos calendários podres
os dias todos que as pedras podres rasgam do calendário

o céu de concreto o sal dos afetos o mal o mar de asfalto
é sob eles é sobre eles é deles que tento falar mas não
mas não falo a língua gira em sua sopa rala em sua vala

o zíper de sua mochila oca o caco de seu copo tosco
os tocos de sua voz a foz da minha fala nela desaba
onde guardei minha história onde morei até ontem

 

*

 

Maria

para minha tia Socorro,
que se foi hoje, curtir o Natal
noutras estrelas

Um dia, um dia qualquer,
entrou numa piscina e deixou lá
suas palavras, a voz firme,
a ideia forte e o rito
de lavar louças, que cumpria
veloz, falante, com mão feliz.

Desde então, seus olhos tentavam
dizer o adeus que não queríamos ouvir.

Tinha Socorro no nome,
mas não como quem o pedisse.
Como quem o fosse: coração
-fortaleza (ou melhor: coração
-recife) para quem fica aqui hoje
numa véspera avessa
aplaudindo o quanto deixa
do tanto que foi.

 

*

Para uma foto de Gil e Bituca

há muita história nessa foto
mas nela também há muita geografia
uma linha que passa de um sorriso a outro
e ela não nasce há 50 ou 60 anos

é linha que vem da mais funda África
oculta na carne em navios negreiros
e se espalha pelo mundo
subvertendo cada chicote, cada chicotada
em corda de violão acariciada
em mergulho nos sulcos da pele preta
e de todos os discos de que salta
a música negra que a nada se compara
(não é por acaso que a pele dos discos
é preta e canta)

repare: a foto não consegue congelar
os sorrisos, os olhos vivos
o segredo que eles cifraram

tente ver os sulcos na pele preta
se ali algum dia a agulha mais fina correr
a música que virá
a mais generosa resposta
a todo sofrimento dos porões senzalas favelas

você consegue ouvir?

 

*

 

Desajustes

sobre minhas mãos sem calos
a biografia deita como um espelho:
os poetas fizeram mal para mim
alguns cantores me roubaram
todo eixo, todo prumo, todo arrimo

na pele persigo seus versos
certas estrofes que me bateram
e ainda batem como um formão
gravando em mim tantas arestas

e de repente entendo
claro como o sol que me alucina
porque não me encaixo
nem vejo mal nisso