22 de abril de 2016

Um poema

Poderia sair um poema fácil daqui, um poema, digo, manufaturado, dentro e fora tudo igual. Até a linguagem corar de vergonha, porque não era bem isso que combinamos. Um poema é uma casa vazia que subitamente é ocupada: seres, móveis, sensações, o espanto de existir. Quando pensamos o poema, pensamos no tempo inventado, o tempo em que Deus não deu corda, fica por fora do tempo, um tempo ao relento. Quando pensamos o poema, somos o tempo mais sua música. O poema é: tempo, infância, eternidade.

“Nostalgia do paraíso, inferno, limbo”, disse Octavio Paz. Música das crianças exiladas, diria Herberto Helder. Uma paisagem nas páginas. Eugenio Montale sorri da estante, um riso metafísico. As catacumbas de Augusto. A estrada pedregosa de Drummond. Sérgio e seu zoo lúdico, espantosa savana. O mar de Sophia. O mar em Lúcio Lins.

Tenho para mim que o poema é uma forma de loucura dirigida, um éden que a caneta traça no mapa dos nossos desejos. A máquina lírica. A água primitiva.

A primeira coisa que fiz com um poema teve um algo de proibição. Foi um soneto, estava preso entre um soneto e uma tarde escura de inverno numa rede, na casa da avó. Os corredores da casa, os corredores do verso. Linguagem ressurgida como que regada, como que abrindo as flores noturnas. Se eu não entendia tanto, não vi problema. Eu guardava os versos como quem espera a semente discutir com a terra o seu projeto, que forma decidir. Eu seria o guardador de poemas, até não agüentar, até iniciar minha própria criação. Falha, às vezes, fiz da precariedade um modo de me guiar. Uma lâmpada indecente que cultiva muito bem sua fazenda de sombras.

Conheci os livros. Desconfiei cá de alguns, desses poetas de cabeceira. Desconfiança boa: ainda entro num livro como a perscrutar o labirinto. Cada direção, infinitos modos de me perder. Um poema é um labirinto lógico e seu modo de atravessar é garantir que a beleza dará voltas e voltas sem achar uma saída. Planejamento onde o caos são suas paredes que se dobram para mais um enigma.

Todo poeta traz uma provisão de sobrevivência para um mundo sem solução. Dar sentido às coisas, mais do que a filosofia (usina que questiona) e a ciência (que vai à frente, mas recua dois passos). São os poemas os pedaços de milagre. Não me lembro dos primeiros livros que adquiri, daqueles em que me senti como os fiéis companheiros de tantas jornadas. Eu, leitor, descobri por acidentes, e fui sendo tomado por desconfiança, depois choque, depois alumbramento. Como quem sobe uma escada para ver melhor em que mundo nós estamos. O poema é uma escotilha. E uma descida aos infernos da fala. É qualquer coisa acima disto que estamos falando. Um poema está sempre acima. Linguagem alta. E horizonte.

 

André Ricardo Aguiar Escritor paraibano. Publicou A idade das chuvas (Editora Patuá) e Chá de sumiço e outros poemas assombrados (Autêntica).