A infância assombrada de Verena Cavalcante
Tenho acompanhado o trabalho de Verena desde "Larva", sua estreia, quando fui assombrado pela crueldade com que encarava temas banais e extraordinários da infância. Em seguida veio o "O berro do bode", quando o feminino é descortinado para além do essencialismo, da condição (quase inerente) de vítima num panteão do sagrado para repensar, reposicionar e escancarar o horror de ser mulher.
Vê-se o deslocamento do cotidiano no primeiro livro para o ritualistico, envolto em bruma e escuridão, no segundo. Ela experimenta, arrisca, busca saídas, testa fórmulas, permite-se crescer, se desenvolver. Em tudo, demonstra coragem e a leveza de quem escreve porque gosta e opta pela horror por se reconhecer nele (e não para surfar numa onda).
Em "Como nascem os fantasmas", Verena estreia no romance. O talento demonstrado nos contos parece ainda mais afiado no romance. A cada página estamos diante de uma autora madura, com um projeto literário consistente e caucada num ampla plêiade de referências, todas bem equilibradas e diluídas para moldar esse Frankenstein faz as boas escritores (e escritores).
Com admirável habilidade reconstrói os anos 1990 para nos apresentar Beatriz, uma pré-adolescente deslocada, marcada pela trágica morte de sua mãe, pela instabilidade afetiva de sua avó e pela figura inerte de seu avô, um ex-torturador da Ditadura de 64, em estado vegetativo.
Os avós adestrados nas forças ocultas, sobretudo a avó, que mobiliza as forças de um estranho culto, abrindo um portal entre o mundo dos mortos e o dos vivos. Beatriz anseia por ser como a avó, quer escancarar em sua mente as portas entre os dois mundos, como meio de encontrar um lugar.
Todo o seu mundo gira em torno da necessidade de ser amada. Encontrar esse lugar perpassa várias vezes por encarnar, vestir-se daquilo que a assombra, de tentar estabelecer na própria pele uma ponte entre a morte e a vida. Veste-se de Ângela para ser amada pela avó, despe-se de si para sentir-se especial e menos sozinha.
A qualidade do texto e as possibilidades que oferece são tão assombrosas quanto a medida exata de crueldade e melancolia com que Verena constrói um romance empolgante, tocante e perturbador.