Ecos e fantasmas em Sangue de Cabra, de Mylena Queiroz
Há quem diga que escrever é um ato solitário, já eu penso que é um ato assombrado. Ninguém senta sozinho para escrever, há sempre ecos de sua vida e de outras vidas, de escritoras e escritores, romances, contos, crônicas, reportagens, livros acadêmicos, bulas de remédio, revistinhas da escola bíblica dominical e por aí vai. Um coro de vozes que reverberam de todos os lados e por todos os lados. Fazer literatura é invocar a companhia de ecos e fantasmas, habitantes da poeira das letras acumuladas no consciente e no inconsciente para criar percusos, histórias e, assim, cavar no panteão literário um lugar para chamar de seu. É exatamente o que faz Mylena Queiroz em sua estreia com Sangue de Cabra.
Com texto maduro, preciso e seguro do que diz e de onde quer chegar, seus contos te arrastam a cada página sem dar descanso, um conto chama o outro, quase como num feitiço antigo regado a fogueira na floresta e banhado a sangue de cabra.
O terror surge de forma natural – como num cotidiano aterrador (como num banheiro da escola – aliás, um conto quase gêmeo ao Leilão, da equatoriana María Fernanda Ampuero) – e do sobrenatural, a exemplo de uma assombração dentro duma cisterna. Seja no natural, seja no sobrenatural, assusta pelo que tem de mais real e concreto, por essa matéria-prima que deixa um gosto estranho na boca e remói por dias o juízo do cabra, pois é nela que a gente se reconhece e é dela que Mylena se veste, quase uma mulher de branco pedindo carona na frente do cemitério numa beira de estrada. Quem viu, morre de medo. Quem não viu, torce para não ver. Quem não acredita, desconfia.
Seus contos evocam a companhia de Samantha Schweblin, María Fernanda Ampuero, Verena Cavalcante, Mônica Ojeda, Mariana Enríquez, Isabor Quintiere, Irka Barrios e de mulheres anônimas ou conhecidas, reconhecíveis, de um ou outro jeito, quer na forma do texto, quer nos temas, quer na crueldade e dureza com que tece cada trama e com que trama cada vida.
Sangue de cabra percorre em nove contos a beleza do mal, a crueldade do bem, a ironia da injustiça, a tristeza da justiça e o riso frouxo da vingança.
Suas protagonistas pisam o chão do Nordeste entre o mágico e o concreto, entre a falta e a abundância, esse lugar deserto e ambíguo, no qual a falta soa abundância e o real se reveste de beleza e mágica.
É de um desassossego incômodo, você lê e se reconhece, ora algoz, ora vítima; ora tristeza, ora melancolia. A única alegria é a do espanto e da satisfação em ler um livro tão bem-vindo.
Ótima estreia.