
Sísifo feliz
por Monique Malcher
Quanto mais adulta fico, quanto mais entendo o que Camus falou sobre ser necessário a gente imaginar Sísifo feliz. Tenho 36 anos e essa semana lembrei de mim aos 28 anos, quando li pela primeira vez O mito de Sísifo. Foi durante essa leitura que entendi que o sentido dos dias está no absurdo. Caçar um ponto de chegada perfeito nos definha. Passei a não sonhar com um dia específico sobre minha trajetória. Todos os dias são grandes acontecimentos, e aos poucos fui compondo minhas coisas, minhas ações, meus magmas. Coloco um pouco dos absurdos nessas criações, me sinto algumas vezes exausta, no limite.
Desde os 28 deixei de pensar no propósito dos meus movimentos e me concentrar na feitura deles. Acho um pouco inocente pensarmos que estamos aqui com um propósito fechado. Algumas pessoas estão sofrendo dores e perdas tão brutais que poderiam pensar que esse é o propósito. Gosto de tomar a vida como uma sala cheia de acumulações e cada um que entra faz o que pode com o que tem, sem pensar que nasceu para fazer aquela faxina.
Sísifo ao rolar a pedra até o pico do monte e depois repetir eternamente a mesma tarefa poderia criar dentro de nosso imaginário a ideia de uma vida que pela repetição nada vale. Só que a cada subida e descida algo se desloca, um mato rompe o chão, aparece um verme ou fica escorregadio, infinitas possibilidades. Hoje, mesmo realizando a tarefa repetitiva de comprar um galão d’água no supermercado, presenciei um casal de idosos caminhando de mãos dadas e comentando sobre o ipê rosa da esquina. Seria um absurdo dizer que nada de bom aconteceu no meu dia tão enfadonho depois de ter visto a cena dos dois.
Todas as possibilidades se apreciadas simplesmente pelo que são, não como boas ou ruins, valem a repetição. É preciso imaginar Sísifo feliz. Nesse período de exaustão de ter nos últimos meses finalizado grandes projetos e ter entrado e saído de relacionamentos parecidos, hoje me perguntei qual seria o propósito disso tudo. E lembrei de Camus. E lembrei também da minha psicóloga, que na minha cabeça não suporta a repetição que é minha vida (risos). Mas nem tudo que está na cabeça é real.
A vida, acredite, não é mais do que aceitar que o cotidiano é absurdo e sem explicação. Não me importa muito o propósito, mas viver por entre a palavra, sentir o caminho que ela me faz percorrer, amar de forma a dialogar verdadeiramente para além da procura por uma criatura gêmea, essa é minha obsessão. E todos os dias o assombro me visita com as consequências desse movimento comprometido apenas com o movimento. É lindo.
Sísifo está feliz quando fecho os olhos e rolamos a pedra. E entendo mais sobre a pedra a cada repetição. Tenho fotografado a parede do meu quarto nos últimos dias, as luzes formam desenhos diferentes, como é possível se a cortina não foi trocada e se a parede não se moveu? A luz e o vento são indecifráveis. E há em meu corpo um pouco de tudo de fixo e desmanche. Serpente e casca, tudo sobrevive aqui, sonho é seguir. E cuidando de não esquecer que não existe a expressão seguir em frente. Seguir é sempre em frente, em todas as frentes.
*Texto originalmente publicado na minha zine Molares (2025)