3 de maio de 2024

#46 Luto e poesia | Entrevista com Bianca Monteiro Garcia

Nathan Matos e Isa de Oliveira conversam sobre o livro breve ato de descascar laranjas, da poeta Bianca Monteiro Garcia, publicado pela 7Letras. A poeta participa da conversa e fala sobre o processo de criação do livro a partir de uma perspectiva em que o luto pode ser um ponto de partida para a criação em meio a outros elementos que nos rodeiam.
breve de descascar laranjas é um livro dividido em quatro partes, evidenciando, de maneira muito bem estruturada, a possibilidade da criação de um livro enquanto objeto poético. Ou seja, os poemas dialogam, o projeto gráfico, e todas as partes possuem um fio narrativo que conduz nossa leitura, fazendo-nos construir uma imagem de diversos acontecimentos e refletindo em nós vários sentimentos universais, entre eles o luto.

Resenha

Um livro de poesia para ser transformar em um objeto poético precisa de uma arquitetura. De uma estrutura para que se mantenha em pé, não fisicamente, mas a partir do seu conteúdo, de suas imagens e criações. Pensar dessa maneira não é algo simples e nem recorrente. Principalmente na amostragem dos livros publicados no Brasil nos últimos anos: por mais que eu leia, poucos são os livros de poemas que me chamam atenção para este ponto em questão, pois, para mim, um livro de poesia só existe enquanto objeto poético e não enquanto um compilado de versos soltos, estruturados em um livro. Isso seria apenas um amontoado.

Em paralelo a estes desencontros poéticos em minhas leituras, eis que surge o breve ato de descascar laranjas, da poeta Bianca Monteiro Garcia, e que está divido em quatro partes: descontinuidade de mohorovičić, crosta, manto e núcleo. Aparentemente, a obra se põe em uma ordem cronológica, mas, ao terminarmos a leitura, uma sensação de distorção no tempo pode ficar conosco. A meu ver, este não é o ponto mais importante, mas como a desenvoltura poética da poeta se mostra na concepção das partes do livro.

As duas primeiras partes tratam, de alguma maneira, sobre a perda, o luto que nos envolve familiarmente. Ao mesmo tempo, quando se pensa no luto, se pensa na morte, o que acaba por se evidenciar e se mostrar facilmente em vários momentos nessas duas primeiras partes. A relação sentimental nos aproxima, uma vez que compreendo que a dor do luto é algo universal e que nos toca, até mesmo quando não há uma relação tão próxima, pois a morte é o desconhecido, aquilo que nos faz temer.

Para além disso, as epígrafes que abrem o livro nos cunham esse passo em direção a este desconhecido, a esta dor de quem fala, da sujeita-lírica que ali se faz presente. Busca em Pizarnik uma possibilidade de dizer em verso aquilo que, talvez, não possa ser dito por si: "não é muda a morte". Ou quando Tamara Kamenszain, outra argentina, fala "O que é um pai? / sonho que ainda o tenho. / não rezem em meus ouvidos / pois vão me acordar". A escolha não é à toa, e é preciso que compreendamos que o passo a passo, da leitura da capa do livro, do título, das epígrafes, nos darão pistas que serão compreendidas depois, e que nos farão chegar até o momento inicial do livro:

pai,

desde que partiu
me vejo incapaz de
encarar
espelhos
desvio os olhos
ao perceber que
vesti seu rosto

A incapacidade de não deixar a memória do pai sumir, ser relegada ao passado, faz-se presente no contato dos olhos, mesmo que se desvie no reflexo do espelho. Essa memória estará ali, sempre, uma vez que, assim como a poeta Tamara, o pai da sujeita-lírica é ainda um sonho que ainda tem.

A inauguração do livro, a meu ver, abre-se de maneira exemplar para pensarmos sobre a composição de um livro enquanto objeto poético. Os passos em sua direção foram criados e, a partir de agora, passaremos pelo lamento das partes que estão por vir. As histórias, tanto do pai quanto da avó, vão sendo desmembradas para que conheçamos um pouco do íntimo dessa voz, que sofre e não se entrega, e que não deixa de lado seus antepassados.

muita coisa morre quando morre uma pessoa

E isso, ao longo do livro se evidencia, novamente, em outra epígrafe, agora na de uma poeta mineira, Ana Elisa Ribeiro, que dita que enquanto tivermos nossos álbuns de recordações teremos a memória sempre dos nossos outros. E assim, passamos a compreender que a memória se apresenta na obra de Bianca Monteiro Garcia não como fuga, mas como espaço de recolha, de abraço, de acalento.

Sentimentos que serão rompidos, de certa forma, quando chegamos até à loucura da terceira parte, quando teremos elementos de que alguém está sendo internado no que seria um hospital psiquiátrico. Neste momento, a voz de quem fala nos poemas muda, assim como a forma poética. E este é outro ponto alto do livro. Pois se a diferença existe, principalmente, entre as duas primeiras partes e as duas últimas, é porque este ponto fronteiriço entre as vozes se modifica, assim como a sua presença nos ambientes vividos, relatados e memorados. Ainda se trata da mesma voz, mas ao mesmo tempo não, pois as próprias confusões sofridas, como na parte terceira, fazem-nos pensar ser uma outra vez.

 

Por fim, quando a sujeita-lírica presente se diz ser a "involução da formiga", ou seja, esta sujeita que vive o cotidiano "a carregar sacolas da casa ao mercado \ do mercado à casa", quer evidenciar as trincheiras que nos cercam no dia a dia. O luto acontece, aconteceu e é preciso compreender que nada para, nada muda. A involução da formiga já acontece quando criamos a consciência do que somos, este ser que apenas sobrevive e esquece, muitas vezes, de olhar para o lado, de olhar para o outro, de vivenciar as experiências.

O título, assim, ao fim, dialoga concretamente com o que lemos e experenciamos durante a leitura. O ato de descascar a laranja, claro, pode ser compreendido de algumas formas, a que escolho é a de rememorarmos o passado, as histórias, quando alguém se vai. A repetição presente, os elementos simbólicos e outras questões que tornam no livro fazem menção ao ato de descascar, como se cada banda da laranja fosse um poema que é lido. Por mais que saibamos que esse ato também é uma memória, que remete às mãos de um pai que se foi e que carregava consigo não apenas a "terra-laranja", mas outras vidas, e que no fim da nossa história "não há potes de ouro" e muito menos "troféu na linha de chegada".

 

Bianca Monteiro Garcia é editora da Macabéa Edições e da Taioba Publicações, formada em Letras e especialista em Literatura Brasileira pela UERJ. É também revisora e professora. Coministrou a oficina “Literatura e loucura: Maura Lopes Cançado, Lima Barreto e Stella do Patrocínio”, na Coart/UERJ. Pesquisadora independente de poesia contemporânea escrita por mulheres, tem poemas publicados em revistas e plataformas digitais. breve ato de descascar laranjas é seu livro de estreia, publicado em parceria de coedição Macabéa + 7letras.

Você pode adquirir o livro AQUI

 

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Créditos
Apresentação e roteiro: Nathan Matos e Ivandro Menezes

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Edição: Nathan Matos

 

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