26 de abril de 2023

A encruzilhada, de Kossi Efoui

A encruzilhada, do dramaturgo togolês, Kossi Efoui, é o primeiro livro do autor a ser publicado no Brasil, pela editora Temporal. Uma peça de teatro em que os personagens atuam sobre um “trauma da violência”, como bem diz as prefaciadoras e prefaciador do livro. Em uma cena em que se dissolvem quatro personagens, temos aqui um “teatro que fala do teatro”, é algo que fica nítido já no início da peça, ou seja, a possibilidade de um metateatro se realiza frente aos nossos olhos, mas isso é algo bom?

De imediato, afirmo que sim. Efoui constrói em um ambiente simples a profundidade da dor, em um lugar onde há “um passado que não pode jamais ser esquecido”, algo que em nosso país, infelizmente, não perdura. Aqui, as dores do nosso povo, há muito tempo esquecidas, só faltam ser retiradas dos livros de histórias, como bem quis certo governo até pouco tempo. Em A encruzilhada, isso não é possível, uma vez que na primeira fala da Mulher, já temos a presença da memória:

O que está acontecendo comigo? Que estranho. Parece... Não. E ainda assim... É mesmo estranho o que está acontecendo comigo. Parece que estou revivendo esta cena. Uma noite exatamente como esta.

Estabelece-se, assim, uma proximidade da personagem com o seu passado e de, provavelmente, quem vai se relacionar com ela. No primeiro instante, temos o Ponto, que ao fim da história se revelará como o verdadeiro arauto do que ali se acontece, como uma história baseada na realidade. Logo após, surge o Poeta e o Cana. Pronto. Temos estabelecido, então, os personagens da peça, que gira em torno da volta daquele que nunca se foi verdadeiramente, o Poeta. Ele sempre volta porque

Eu nasci nesta encruzilhada. Todas as rotas já estavam traçadas. Não existe nenhum encontro. Sair. Sair. Desta encruzilhada de ilusões. Foi por isso que viajei. Mas desde então só vivo com imagens frias.

O Poeta, que buscou fugir do passado, deixar suas dores de lado, não consegue. A memória, o seu lar, o perseguem, quase como uma tragédia grega, o seu destino já estava predestinado. Já a mulher revela porque sempre ficou, pois ela é mulher, nasceu no esquartejamento.


A conversa entre o Poeta e a Mulher, em meio às deixas que o Ponto dá, acontecem e, talvez, o leitor, em determinado momento se pergunte, do que falam? A resposta está aí, sobre eles, sobre suas vivências, seus relacionamentos, sua vida, sobre a possibilidade de existir. A complexidade de que Efoui constrói está em entender o passado deles, a que se remetem? E nesse lapso temporal repetitivo, que parece acontecer sempre, vemos o Cana surgindo, sentindo um cheiro suspeito e querendo levar, novamente, o Poeta preso, para uma tortura viável. O Poeta está sendo procurado porque se levantou contra o sistema, é o que parece. Por ser um inimigo, um espião.

Curioso como no diálogo que se dá com a presença primeva do Cana e da Mulher, ela pede, encarecidamente, que não o leve, pois é apenas um Poeta, como se fosse uma peça sensível, frágil, que nada pode fazer. Ora, o Poeta nada mais é aquele a quem a palavra serve, realmente, como uma arma, como se ele próprio fosse um diapasão, que dispersa a todos e a todas as palavras da consciência.

O que me pesou, enquanto lia, foi quando a Mulher diz

Dá uma chance de ele existir por si mesmo.

Existir por si mesmo. Conseguimos? Em que condições? Essa possibilidade nos é viável quando temos sobre nós a falsa sensação de estarmos seguros? Essa frase ficou martelando na minha cabeça, buscando uma relação entre a nossa sociedade, existência e liberdade. Até que ponto conseguimos realizar o que pede a Mulher? O Cana dá uma chance, vai dormir, enquanto nós não temos sossego algum.

A peça avança até o momento em que o Ponto diz “Chega!”. Em que se revela como autor da peça, como aquele que viveu o que ali se passa, o que ali se repete. Aí está o motivo da repetição. É o Ponto que, praticamente, dirige o que se passa, quem lembra, quem não deixa a memória morrer. Ele mesmo afirma, Eu sou a memória daqui em diante, como se visse pronto para a disseminação da peça, e que está inserida na fala da Mulher no início, quando ela diz que esta é a última vez que isso acontecerá. O Ponto será o historiador, aquele responsável por contar sua própria história. Essa é “a única forma de viver” que lhe restou. Ele busca, o Ponto, assim como o Poeta, existir, neste momento, por si mesmo.