7 de abril de 2023

A virgem dos sicários, de Fernando Vallejo

Éramos, e de longe, o país mais criminoso da Terra, e Medellín, a capital do ódio.

Em A virgem dos sicários (tradução de Rosa Freire D'Aguiar), do colombiano Fernando Vallejo, Medellín é, sem dúvidas, a personagem mais importante. Vista pelo olhar amargurado de seu narrador, um homem de meia-idade, gramático, gay e amargo, em sua errância pela cidade e história, ao lado de Alexis, um jovem sicário.

A relação segue uma crescente demarcada por um sentimento ambíguo, não é só sexo tampouco amor, mas, sim, algo próximo da devoção. Ao longo do romance, vê-se uma estranha forma de lidar com a sacralidade. Materializado nas igrejas e virgens impassíveis sobre o tremular frenético das chamas das velas e dos lábios peregrinos, o sagrado encarna-se no corpo nu de Alexis, no rito impudico do amor que celebram, na devoção muda, inominada e recíproca.

E não me venham os mexeriqueiros, que nunca faltam, com a história de que mataram o inocente por ouvir música alta. Aqui ninguém é inocente, seus porcos. Nós o matamos porque era um chichipato, um detrito, um lixo, porque existia. Porque contaminava o ar e a água do rio. Ah, chichipato, nas comunas, quer dizer "delinquente de décima categoria", um "ratinho", isso.

O narrador diverte-se com as ambições pequenas do sicário, e o sicário o celebra por meio de sua pontaria e dedicação ao ofício da morte. É um de seus anjos, a fazer justiça em uma terra em que não há um só justo.

A cidade padece sem as leis que lhe deveriam trazer ordem, mas por incapacidade estatal ou corrupção institucional, é lançada a inescapável ler do morrer ou sobreviver. Assim, a Morte, com M maiuscúla, desponta como entidade, uma virgem venerada num templo a céu aberto, cujos sacerdotes de armas em punho executam o sacramento da extrema-unção.

A Justiça em Medellín tem olhos abertos, nenhuma balança e revólver engatilhado, sem perdão, sem misericórdia, sem nem mesmo ódio ou propósito, é a morte pela morte.

[...] Deus é o Diabo. Os dois são um, a tese e a antítese. Claro que Deus existe, por toda parte encontro sinais de sua maldade.

Nem mesmo o narrador, posto como o humano no romance, é capaz de organizar toda a revolta que sente. Talvez a violência de sua própria trajetória seja o que alimenta seu ódio à Colômbia, à pobreza de sua gente, à inutilidade de suas crenças. Alexis canaliza essa fúria contida pelo intelecto no único modo que lhe foi permitido existir, como um agente da Morte.

A narrativa é veloz, tomada num fôlego único, um relato despojado, despudorado e sincero a alguém, não se sabe quem, mas talvez ao futuro, aos que virão e tenderão a esquecer ou minorar a história que se perde no fluxo da cidade, nas notícias sempre atrasadas, nos corpos amontoados em necrotérios e normalizados pelo cotidiano da cidade. É a guerra tomada como rotina. A violência recitada como um credo. Tiros disparados como as Ave Marias em um rosário.

A acidez com que o narrador constrói suas críticas, o desprezo pela vida humana, o fascínio e a repulsa pelo trancendente, pelo imortal, pelo perene ressaltam-se no seu esforço pela finitude, na sua devoção ao Anjo, na necessidade de não permanecer no mesmo lugar.

O passado é visto por entre frestas, como algo desnecessário, e, quando aponta, é sempre coletivo.

A habilidade de Vallejo em imprimir ritmo e no uso do espaço impressiona, e acrescenta ao romance ainda mais virulência e desprezo. Em momento algum recorre ao leitor pra lhe complementar as sensações e sentimentos. Tudo está no texto. Além disso, há camadas e camadas por descobrir, de técnica narrativa, de crítica social, de construção de personagens, do jogo entre sagrado e profano.

Interessante que num romance cujo título remete a fé dos sicários, quer para guiar seus tiros, quer para proteção, o de mais sagrado e puro seja a celebração do encontro do corpo de um homem gay de meia-idade com outro ainda jovem, belo e protegido pela Virgem em um escapulário. Nada mais bonito, nada mais honesto, e, por isso, nada mais sagrado.