9 de dezembro de 2022

Rainhas da Noite, a realeza travesti paulistana sob o olhar de Chico Felitti

Rainhas da Noite, de Chico Felitti, nos apresenta a um ilustre mundo desconhecido: o das poderosas e lendárias rainhas travestis que fizeram fortuna com a prostituição no centro de São Paulo.

Dito assim, pode soar que o reinado de Jacqueline Blábláblá, Andrea de Mayo e Cris Negão era nefasto e imoral, como se tudo pudesse ser simplificado ao certo e errado, justo e injusto, num arco-íris bicolor e cinéreo. Aí mora a perspicácia e talento de Felitti para reconhecer personagens e histórias inusitadas e, no caso, ao revelar um universo de contradições, antagonismos e acolhimentos que fazem dessas histórias ainda mais interessantes e necessárias.

Reconstruídas a partir de testemunhos, uma vez que a invisibilidade de uma existência T apareça na ausência de documentos e registros oficiais. Mesmo tendo construídos impérios de luxo e glamour (como o castelo Welch ou a lendária Prohibidu’s), desfilado em carros luxuosos, se esbaldado em banhos de champagne e toda ostentação que o dinheiro lhes permitiu, a historiografia oficial as ignorou.

Em alguma medida, suas histórias se confundem com a da própria prostituição das pessoas T em São Paulo. Sem juízos de valor, Felitti aponta para as contradições, crimes, tragédias particulares, preconceitos e desafios, inclusive entre os LGBTQIA+ naquele momento.

Essas transformações também apontam para os modos como a própria classe média manteve (e mantém) uma relação ambígua e continuamente tensionada.

O texto de Felitti se destaca pela qualidade e pela capacidade de aproximar o leitor. A cada frase seduz um pouco mais, envolve um pouco mais, enlaça com uma desconstrução surpreendente e sensível humanidade impressa em figuras tão poderosas, contraditórias e mitícas, uma realeza vista pela lente mais generosa e sutil, travestis sem a mácula do estereótipo e preconceito. Reveladas em suas complexidades e contradições, em seus gestos de tamanha sensibilidade e empatia ao mais perverso, mesquinho e violento.

Terminei o livro com desejo de conhecê-las, nesse lugar entre o encanto e o medo, um súdito rendido a majestade recheadas de luxo, amor, ódio, vingança, risos e festa, muita, muita festa.