23 de maio de 2022

Ligue 180!

Ainda bem que na literatura tudo pode ser pretexto. Embora eu esteja longe – muito longe! – de poder falar em primeira pessoa sobre a maternidade, esta foi a minha pauta literária nos últimos dias: no passado 09 de maio, a Revista Mormaço publicou o “Quatro mães”, uma sequência de poemas que escrevi para (des)celebrar essa data tão romantizada. Comecemos com uma ressalva: tenho amigas que vivem a maternidade aberta e lindamente, mas os meus olhos não se descolam das mães que o Dia das Mães esquece. Problema meu, né?! Talvez observar as mulheres esquecidas seja o meu lugar de fala.

Como eu disse na apresentação do poema, as mulheres com quem cresci sempre foram violentadas por homens e, depois de mães, essa violência explodiu sobre os corpos de muitas delas. Por isso, a minha poesia não pode ser fundada no esquecimento dessas mães – deixo esta função para a ideologia neoliberal que naturaliza a maternidade como vocação (e não como trabalho), de modo que as mães possam aceitar caladinhas a missão de procriar, amamentar e assear o mundo gratuitamente, enquanto (no bolso) os homens acumulam capital econômico, (nas mãos) sangue e (na fala) hipocrisia.

Esta crônica, na verdade, não foi escrita para falar sobre a maternidade, mas sim para compartilhar com vocês as reações que recebi de pessoas que leram o “Quatro mães”. No dia seguinte à publicação, muita gente me perguntou se eu passei por alguma daquelas situações (se engana quem pensa que a biografia é o pressuposto da literatura). Quem me perguntou isso não se preocupou tanto com os sujeitos ali representados, mas com o pobre autor, um homem que pode até ter sofrido agressão por ser gay, mas não por ser homem – ao contrário das mulheres, que são violentadas pelo mero fato de serem mulheres.

Houve quem me relatasse também a perplexidade diante dessas imagens da violência escarnada, escancarada. Recebi comentários como “visceral”, “sem palavras”, “soco no estômago”, “que tristeza” – e por aí vai. Num triste oposto, alguns homens (todos heterossexuais) me escreveram dizendo que exagerei, que “tá louco?!”, que “pegou pesado, hein, amigão!”.

A heterossexualidade é previsível e, por isso, não me assusta. O que me espantou mesmo (ainda que também não se trate de novidade) foram as muitas mensagens que recebi de mulheres que se identificaram com uma (ou mais) das quatro experiências descritas nos poemas: violência física e assassinato, estupro intraconjugal, violência parental e violência psicológica (para entender melhor esta sequência, leia o poema aqui). Recebi relatos de mulheres que, neste dia de hoje, enquanto você lê esta crônica, estão sofrendo violência dentro de suas casas. Ao ler cada uma dessas mensagens, tive aquele susto raro (de vertigem brevíssima) de quem se aproxima de um abismo e logo se lembra que está no penhasco de sempre: a violência de gênero segue serpenteando em silêncio dentro das casas. A cada minuto mulheres morrem, apanham, são estupradas e maltratadas em muitos níveis. Reforço, então, o que disse noutra postagem: se você conhece alguma mulher que esteja sofrendo violência em casa, denuncie. É importante que a nossa atitude seja literária, mas urge que seja também pragmática.

Denuncie a violência contra as mulheres. Ligue 180!