4 de março de 2022

Memória para o esquecimento, de Mahmud Darwich

Mahmud começa a apresentar uma poesia profunda logo no título. E não é para menos. Se existe um livro escrito em formato de prosa e que carregue em si uma poesia complexa e brilhante, esse é o “Memória para o esquecimento”. Considerado o poeta palestino, Darwich escreveu, sem dúvidas, um dos livros mais poéticos que já tive contato. É interessante destacar que as narrativas de autores dessa região do planeta – Oriente Médio e Norte da África, mais precisamente – são repletas de profundas reflexões.

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O autor utiliza da prosa poética para contar uma história que se passa em um único dia. Narrado em primeira pessoa, o personagem-narrador desse romance – que é o próprio autor - acorda em uma manhã de agosto na cidade de Beirute, capital do Líbano, que está sendo alvo de um bombardeio israelense em 1982, para preparar seu café, uma das práticas mais sublimes da vida, segundo ele, e que, apesar de tudo que possa estar acontecendo, precisa ser realizado da maneira mais perfeita possível. E é em meio a esse bombardeio que ele, através de sua trajetória, memória e vivência atual, vai contando sobre os horrores que as guerras podem ocasionar na humanidade, e, mais precisamente, nessa região.

“... a essência da guerra é degradar os símbolos e levar as relações humanas, o espaço, o tempo e os elementos de volta a um estado primordial, que faz com que a visão da água jorrando de um cano quebrado na rua nos deixe felizes, porque aqui a água chega até nós feito um milagre.” (p. 20)

Na medida que os eventos vão se desdobrando, o personagem vai reencontrando pessoas próximas que vivem na cidade, ao mesmo tempo que observa as paisagens, formas, movimentos e rostos, narrando a desconfiguração resultante dos conflitos. Tudo parece sem cor, sem forma, sem movimento, sem vida. E é com esse pensamento no trajeto em meio ao caos nas ruas da cidade que Darwich critica governos, instituições, governos, povos, e tudo mais que origina as guerras; e, ao longo da narrativa, somos apresentados à diversos personagens que deram o pontapé inicial de toda essa devastação.

A memória existe para que não esqueçamos quem somos e onde devemos estar; ao mesmo tempo que alimenta as formas de viver. Mas a memória existe, também, para que esqueçamos dos momentos ruins, sem esquecê-los, claro, com o objetivo de continuar lutando para que tudo acabe e que não venha acontecer novamente.

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O ataque histórico à Beirute realizado por Israel na referida década, mostra a tensão em que essa região era/é envolta. São conflitos que perduram por bastante tempo, os quais possuem como personagens não apenas árabes e judeus, mas também nações, povos e instituições.

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Sem dúvidas, Darwich é um escritor que tem que ser lido por quem ama literatura. Sem dúvidas um livro para estar na parte ilustre da sua estante.

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Eu, como apreciador de um excelente café, concluo com a seguinte citação:

O aroma do café é um retorno, um trazer de volta as primeiras coisas (...). É uma jornada, iniciada há milhares de anos, que continua recomeçando. O café é um lugar. O café são poros que deixam o dentro vazar para fora. É uma separação que une o que não poderia ser unido senão por seu aroma. É o contrário do desmamar. É um peito que nutre profundamente os homens. Manhã nascida de um gosto amargo, leite da masculinidade. O Café é geografia.” (p. 31, 32).

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DICA: Lançamento do livro com o professor Geraldo Campos e a tradutora da obra, Safa Jubran.