18 de fevereiro de 2022

O acontecimento, de Annie Ernaux

Confesso que tentei começar esse texto de muitas maneiras. Pensei em optar pelo aspecto simples, direto, sem floreios, sentimentalismos ou qualquer sorte de efeite da linguagem caractarística de Annie Ernaux, que trata e narra suas memórias de modo desconfortável e acolhedor.

Ou ainda, pelo tema central de O acontecimento (Fósforo, 2022), a saber, o aborto.

Daí poderia imprimir algum tom professoral: "Eis uma palavra capaz de despertar reações diversas e, por vezes, antagônicas. Pode ir desde, posições parenéticas, com ênfase na sacralidade da vida humana, balizadas pelo peso do pecado e da condenção. E, ainda, posições utilitárias, considerando o desejo e o direito ao próprio corpo a justificar, fundamentar e validar a liberdade de escolha. Contudo, nem sempre se condenou o aborto. Na Antiguidade romana, o feto era compreendido como pars viscerum matris, passando pela defesa agostiniana de sua possibilidade antes de haver o sopro de vida (movimentos fetais), posição que se altera depois para a sua condenação. Durante o medievo, era condenado à pena capital ou de trabalhos forçados. De lá para cá, com a legalização em anos recentes, matém-se como um estigma, um peso sobre as mulheres submetidas a toda sorte de julgamentos morais e legais". E logo me convenço de que soaria arrogante, demasiado didático, de um amostramento descabido ou simplesmente chato.

A verdade é que ainda não sei como ou por onde começar.

Certo mesmo é que Annie Ernaux, em 1963, então uma estudante de 23 anos, engravida do namorado que acabara de conhecer, e sem poder contar com seu apoio ou da família, numa época em que o aborto era ilegal na França (sua permissão só acontecerá em 1975), embarcará praticamente sozinha no acontecimento que tenta destrinchar quarenta anos depois, já reconhecida como uma das principais escritoras de seu país.

A solidão, complexidade, julgamentos e toda negação à liberdade sobre seu corpo surge nas entrelinhas de sua narração. Ernaux não o retoma para fazer um balanço, lamento ou alguma sorte de purgação. Tudo é intenso, atroz e, ao mesmo tempo, comedido.

É difícil escolher as palavras exatas para descrever a beleza e o apuro com que executa a sua escrita. Sua narrativa oscila entre aproximações e distanciamentos, entre o retorno ao passado e o olhar para este a partir do momento em que escreve. Assim, recorta os sentimentos que a atravessaram e os que a atravessam a partir das lembranças.

A escrita carrega a angústia, o terror, a fragilidade e a frustração. E a memória, em seu juízo tirânico, reabre velhas feridas, pondo todo tempo em dúvida se estão realmente cicatrizadas.

Qaundo o aborto ganha nome, história, RG e CPF, o verdadeiro crime passa a ser o horror inflingido sobre meninas e mulheres acusadas, apontadas, apedrejadas, como se tivessem de carregar no ventre toda a moralidade e hipocrisia insuportáveis aos que prezam pela moral e pelos bons costumes.

Ernaux expõe o abandono, o desespero, o medo, o desprezo e a frustração, tanto vindo de fora quanto de dentro. São muitas as nuances que poderiam se desdobrar em outros tantos parágrafos e reflexões que o espaço e propósito de uma resenha não me permitem.

Em suma, O acontecimento confirma a beleza e potência da prosa de Annie Ernaux, e impressiona pelo talento de transformar a forma simples de sua escrita em um texto profundo, sedutor e avassalador.