1 de fevereiro de 2022

O livro: uma impossibilidade

Hoje tive pena do Paulo que, tempos atrás, caçava certezas. Uma certeza nada mais é do que uma obviedade bem argumentada. E o óbvio nos cega para a complexidade que detrás dele pulsa escondida. Por exemplo: um livro. Poderíamos afirmar que um livro é um objeto de comunicação, um texto escrito por alguém com alguma intenção, impresso no papel ou em formato digital? Poderíamos afirmar que um livro tem um autor ou autora? Poderíamos afirmar que os livros são aquela beleza pesada que entorta e faz sorrir as estantes de algumas casas ou bibliotecas? Poderíamos afirmar que o livro é um livro?

Por experiência própria, entendi que todas essas afirmações consistem numa clara impossibilidade: a de que o livro como objeto físico é uma obviedade que mascara o que o livro realmente é.

E o que o livro realmente é?

Pude entender o que é um livro ao ver em minhas mãos o homem à espera de si mesmo (Editora Mosaico, 2021), um longo poema que escrevi durante quase dois anos de pandemia, ainda em Portugal, e que lancei em Belo Horizonte. Quando a editora me enviou a foto da prova impressa, eu observei bem aquele objeto paginado, encapado em papel e serenidade. Nesse breve instante de contemplação, fui inundado por muitas sensações e entendi que aquela imagem do livro representava o irrepresentável. Eu tinha diante dos meus olhos a fotografia da refutação.

Para mim, o livro é um processo, um percurso, um caminho sem volta. Ele começa quando em nós nasce qualquer faísca literária, qualquer verso anotado às pressas no canto da agenda. E essa anotação vai se alongando, ganha tentáculos, vira polvo-palavra e engole completamente quem a começou. Isto já é o livro.

Também é livro o texto encorpado e decidido, enviado para amigos/as, criticado e depois corrigido. A dor e a delícia de cortar palavras já são o livro, esse pânico diante de um verso que soa mal, que incomoda e cujo acabamento é um mistério aos nossos olhos que buscam certeza e, nela, encontram o óbvio – esse convincente lunar.

É livro também o envio à editora, a negociação, os pedidos de revisão e emendas, a diagramação, a criação da capa, os pedidos amistosos (e nem sempre bem recebidos) de textos para a capa e o prefácio, uma resenha aqui e outra ali, o projeto de divulgação, de distribuição e venda. Tudo isso é o livro. O lançamento do livro também é o livro: encontrar pessoas queridas, vê-las paradas, de pé ou sentadas, espreitando página por página aquilo que – há algum tempo – estava entranhado nesse meu corpo de poeta inseguro. A tinta da caneta no autógrafo também é o livro, a minha afetividade apressada e sincera de quem oferece o que assina.

As impressões que chegam depois, as interpretações de conhecidos e desconhecidos, as críticas sejam elas quais forem, toda essa miríade verborrágica que surge à volta de um livro também é o livro escondido atrás do óbvio volume de papel, o seu corpo. O silêncio também é o livro: a não leitura, o desinteresse, o esquecimento até por parte de quem comprou a obra, a máscara de quem diz-que-lê-e-não-lê, os equívocos interpretativos, as piadas até amigáveis, a confusão estética – observem que tudo isto desemboca no ego do escritor, que também é o livro.

Cada maravilha e cada angústia de escrever, cada assombro e cada soco tomado ao ler e reler, tudo isso – e nem sei mais o quê – compõe o livro. O papel impresso e encadernado é o de menos. Aquilo que escrevo à tinta e publico é o de menos, porque isso é visível, é óbvio – e o óbvio é sempre o de menos.

Por tudo o que ele realmente é frente ao que parece ser (e também é), o livro se faz uma grande impossibilidade de afirmação.

Já vi que sofro de livros.




Paulo Geovane e Silva nasceu em 1985, na cidade de Manhuaçu (Minas Gerais). É escritor, editor, tradutor, crítico literário e professor. Licenciou-se em Letras pela PUC Minas (2010). É mestre (2012) em literatura brasileira e doutorando em literaturas africanas de língua portuguesa pela Universidade de Coimbra. Em 2018 estreou na poesia com “caída” (2018, Editora Letramento) e em 2021 lançou “o homem à espera de si mesmo” (poesia, Editora Mosaico). Escreve esporadicamente para o Le Monde Diplomatique Brasil. Radicou-se em Madrid e, atualmente, edita a Revista Ponte.