17 de janeiro de 2022

O diário, de Saulo Machado

Domingo. Acordei com o ombro direito dolorido. No café da manhã, os cabelos de C. estavam loucos, seus olhos inchados. Impossível olhá-la. Às dez, P. e G. vieram jogar cartas comigo. Ganhei uma vez. Depois, levantei-me cuidadosamente e pedi para que fôssemos almoçar no refeitório — enquanto ainda me restam forças. A comida é mais quente lá. Tive a mesma tarde de sempre. Estou há meses nesta ideia de escrever: ora acho uma tolice inútil, ora sinto como se fosse minha única esperança. Tem algo que me arrasta; não posso deixar de constatar. O argumento é um tanto tardio, mas ainda sim um argumento — e neste tribunal da velhice, me acuso tanto quanto me defendo. 

Uma tentação de atravessar estas portas e dar de cara com o mundo me enche o coração de uma intensidade que só se acha nos jovens, o que me é estranho, pensava ser um esforço vão. O fato é que se faço isso, saberei exatamente o dia do meu fim. De outra forma, preciso desse prolongamento. Eis minha reparação definitiva: a chance deste diário, irrepetível, e que deve finalmente tornar-me útil? É isto! Aqui está minha salvação e minha revolta, ou devo dizer ainda: o que deixei, apressadamente, no mundo. Às palavras, e somente por elas, já que vivem acima dos homens e dos séculos. À cama. 

*

Segunda. 9h30. Estas torradas frias que me trazem, balançando pelos corredores azuis e cinzas, onde certamente um tipo de febre repousa em cada molécula de ar, são penosas de comer. E o café me deixa inquieto a ponto de pensar em toda existência. O ombro direito ainda dói, mas um pouco menos. C. ainda dorme.  

13h. Consegui caminhar até o refeitório — mais um dia, posso crer. P. estava lá, disse-me que G. estava realizando alguns exames. G. me parece mais companheiro, desde que cheguei aqui. P. pensa muito no futuro; faz planos, imagina-se caminhando pelo centro e fazendo compras, conta de uma possível viagem para a Itália, provar vinhos etc. Isto me incomoda. Como pode? Sentir-se jovem: o maior delírio desta idade. Ainda mais ele, que habita um corpo tão encurvado quanto o meu, frágil pela osteoporose e com histórico de quedas e paralisias que o deixam cada vez mais próximo da morte, sem que se queira admitir. 

  1. parece intimamente contar os seus dias, assim como eu. Mas ainda goza de boa saúde, e é indiferente à morte. Conta de suas aventuras no Leste Europeu, pilotando aviõeszinhos de carga no interior de invernos loucos que, não poucas vezes, fizeram-no pousar sem distinguir nem chão nem céu. Ou fala sorrindo de todos os acontecimentos que o levaram ao sétimo casamento, com uma sérvia de sessenta anos (que morreu dormindo, conta ele), de olhos quase cinzas e de um sexo “de todo o corpo”. Um apaixonado. Só não voa hoje porque as legislações contradizem seu vigor físico e cognitivo.  É isto: no fundo, ele não precisa reparar-se com coisa alguma. Ah... odeio ter de me lamentar com esta luz ofuscante que não me deixa escrever em paz. 

21h. Tarde de sempre. Diferença que dessa vez pedi para que me arranjassem um rádio. Incrível como surgem programas iguais àqueles que ouvia com trinta anos. Com a diferença de que hoje falaram tanto de bem-estar, que fui obrigado a desligar, voltando ao silêncio que permeia aqueles olhares e constrange a todos naquele lugar. Qualquer desgraça é motivo para resiliência, afinal. 

Depois de tantos meses, começo a pensar que ter vindo morar aqui foi uma escolha inteligente. Não perco mais o tempo precioso de deslocamento, que agora podem ser melhor gastos neste rascunho apressado e sedento. 

*

Terça. C. ligou a televisão cedo. Miséria e lástimas por todo o dormitório. As pessoas ainda sobrevivem neste país sem fim. Tentei me levantar para ir até a janela; não consegui. Pelo meio da manhã pedi para que chamassem G. pelo interfone. Ele veio, trouxe o baralho, jogamos até o almoço. Contou-me dos exames ontem: lasers, raios x, agulhadas. Resultados somente no sábado. Almoçamos no quarto. Depois, às horas da tarde, cada um com o seu caminho — o de G. um pouco mais livre que o meu. 

Pela primeira vez na vida pensei em suicídio. Há quanto tempo estou aqui, afinal? Mas nem isso posso mais levar a sério. Aliás, seria tão fácil: abrir algumas portas e caminhar por alguns dias sem ter de voltar. Seria um re-desperdício, um erro que se comete ainda uma outra vez etc. Terei um tempo mais bem gasto nestes papéis.

Após o jantar, tivemos a “sessão de cinema para todos”. São sempre filmes felizes ao ridículo, mas não posso julgá-los: é preciso contrabalancear o sofrimento fincado nesses corredores.

Um vento frio escorre pela janela, passa pelos cabelos de C., e chega até mim. É o único acalento possível nesta rotina vazia. 

*

Quarta. 11h. Por que perante toda uma vida foi somente ontem que pensei em suicídio? Se isso tivesse passado pela cabeça ao menos enquanto sadio, num final de tarde daqueles em que se volta do trabalho, comprimido num bonde que penosamente se arrasta nos trilhos para deixar todos em casa, talvez hoje não estivesse correndo contra os séculos nas linhas de um diário. 

Hoje cedo uma moça entrou pela porta principal, vestida em um jaleco alvo, sem bordados, e veio à minha cama. Apresentou-se como psicóloga, sem dizer o nome. Me perguntou se estava bem, se eu recebia visitas, depois quis saber da minha rotina. Seu olhar vagava entre a cama e o chão com as minhas respostas sucintas. Depois de um longo silêncio, com as mãos nos bolsos do jaleco, me perguntou sobre minhas expectativas. E respondi-lhe: “nada mais que a morte”. Suas pupilas pareceram dilatar, franzindo a testa em minha direção. Mas ficou em silêncio. Eu poderia ter lhe dito outra coisa? Sim. Disse-lhe que era uma brincadeira, mas ela não riu. E quando ela saiu pela porta, sem dar qualquer sorriso e dizendo que voltaria em uma semana, senti-me em um daqueles momentos em que a verdade facilmente se disfarça numa brincadeira. É isso: para morrer é sempre muito cedo. Por isso, um diário. 

20h. Almoço com G. e P.. A mesma tarde. Noite fria e sem graça. Perco no dominó três vezes. 

*

Quinta. 10h. Acordo com o médico aferindo minha temperatura. Diz que devo fazer exames até às 13h, e que vou ganhar um andador. Será bom, talvez consiga visitar P. e G., ou andar até as janelas para ver o fim da tarde. 

14h. Exames demorados e vertiginosos. Máquinas que giram em torno de mim, procurando o óbvio que nunca se acha. Agora, mais máquinas, dispostas por todo o corredor. Cada um senta em sua poltrona, onde estendem-se os braços e uma enfermeira passa dando dois furos em cada um. Assim a tarde se desenvolve, cada qual esperando suas filtradoras apitarem, para então poder ir. Os olhares se encontram pairando sobre os braços de veias latejantes, ou nas telas que marcam nossa pressão, ou com o próprio sangue sendo filtrado. Um silêncio desabado no chão. Até quando as máquinas nos salvarão da má vontade dos homens? 

21h. As perguntas da psicóloga recaem sobre mim. Naquele silêncio pálido, que tanto tive que evitar com uma brincadeira, vi toda minha vida, e não achei nada. Na verdade, ela poderia ser a própria vida me perguntando: “que vai fazer de mim?”. E respondo com uma brincadeira e percebo que nem eu mesmo ri. Parece-me que a ânsia por uma justiça própria e incurável esgota o que restou em mim. Ontem e hoje foram os dias mais difíceis aqui. Mas apesar de tudo, amanhã terei um andador. E ainda me restam forças para escrever. 

*

Sexta. Dia extremamente melancólico. Enquanto tomava café e ouvia as lamúrias vindas da TV de C., recebo a notícia de que P. foi para a UTI. Paralisou-se de todo um lado. E foi então que senti o egoísmo do mundo brotar em meu coração. Perguntei a respeito de P.? Não. Do contrário, não hesitei em pensar quando será a minha vez. É preferível algo fulminante, impensável. Isto sim é morte. O resto, um sofrimento irreparável que tarda inutilmente, senão ele mesmo... é uma ilusão isso de adiar a morte. Foi preciso vim até aqui para ver que o amanhã é vazio, eternamente vazio. E agora, P.! De repente, sofrendo. É tão notável o quanto que nessas camas passamos a ver: é repentino o valor que damos às cinzas. Agora entendo por que toda a inquietude do mundo corre nas veias de um velho. Afinal, o quanto de mim restou nas horas que não posso mais contar? E esta coisa de passado, presente e futuro, que agora julgo intolerável... 

*

Sábado. 14h. Pela manhã, acordo de sonhos onde anjos morrem e renascem demônios. Cansado. Talvez seis horas de sono. G. salvou-me, ajudando a testar o andador. Desencostei dos dois travesseiros enormes e aveludados que me resguardam, ele sentou-se ao meu lado, colocando seu ombro sob meu braço. Respiramos fundo e no três levantamos, como se fôssemos um enorme guincho de içar carros. Minhas mãos foram direto para as empunhaduras acobertadas por um tecido aveludado e, em seguida, com as pernas leves pelo peso agora distribuído nos braços, pude sentir a pouca velocidade que ganhava com todas aquelas hastes arrastando-se no chão. G. bateu palmas, como se visse uma criança aprendendo a andar. É um pouco disso. Pela primeira vez, fui até o fim do extenso corredor, onde ligam-se as duas alas. Significa que poderei visitar P. e G. — se alguém me tirar da cama. 

21h. Depois do jantar, eu e G. fomos à recepção para saber o estado de P.. Depois de bons minutos, nos disseram da gravidade de seu estado. Essa maneira de falar — tão aberta — me dá a sensação de que querem nos descer a morte goela abaixo. Toda vez que alguém se vai, falam seu nome antes de começar o jantar, como nas filas dos bancos, onde chamam um por um. 

Querem fazê-la parecer natural. Mas não é. Então, entre estas portas de aço, a esperança é tentadora, mas é a primeira que deve morrer. E eu escrevo para esquecê-la. É por isso que um tipo de nostalgia está impregnado nas torradas, nas camas, nos corredores e nas janelas. É também aqui que o inferno parece mais quente, ou o céu preenche-se de esplendor — mas isto é para os que acreditam; se eu escrevo, é porque não creio. 

Apesar das enormes diferenças com P., sinto-me triste como se tivesse visto o último céu do verão. E agora me parece que qualquer coisa que o homem faça de sua vida é capaz de me enternecer. Eu devo ser um desses que viveu sem se dar conta. P. tinha planos, futuro... eu só tenho este diário. E apesar de odiar sua intensidade, eu trocaria minha cama pelo seu leito.

23h30. P. morreu. Hoje conheço uma lágrima sincera. 

*

Domingo. Acordo tarde no meu único dia sem hemodiálise. G. veio, me ajudou a levantar, mas sem baralho ou dominó. Talvez não quiséssemos lembrar que agora somos uma dupla. Um vento pasmo entrava pelas janelas do corredor, escorrendo pelas alas, e o dia se estendeu num eterno silêncio. Depois de almoçarmos, G. pegou duas cadeiras dobráveis e levou-as, uma em cada mão, para o pequeno pátio onde se pode ver o céu por inteiro. Depois voltou e me ajudou a caminhar por todo o corredor. 

A luz cinza de uma tarde nublada recaía sobre nossas peles secas, e abaixo de nossos pés uma grama rala e malcuidada nos livrava de qualquer cobrança. Como que escondidos de toda animação dos jovens, no fim de uma tarde inaceitável e silenciosa, um tom pastel escorregando entre as nuvens, quase pálidas, anunciava o fim dos nossos dias. Nessa hora, em que a nostalgia assalta os corações e o mais sociável ser se sente solitário, sonhar com uma outra vida é inevitável.

 

Conto incluso no livro O jogo das margaridas, publicado pela Mormaço Editorial