10 de dezembro de 2021

Porco de Raça, de Bruno Ribeiro

Os fracos do mundo não costumam bater, mas aprendem desde cedo a apanhar.

Porco de Raça é o quarto romance do mineiro-paraibano Bruno Ribeiro, e  vencedor do Prêmio Machado da Darkside Books.

Seu protagonista é um professor paraibano envolto numa sequência de fracassos e confusões, que acaba indo parar num ringue de lutas clandestinas, onde homens pobres lutam para entreter ricos. Todos obrigados a usar máscaras de animais e submetidos a um processo intenso e cruel de bestialização.

Vindo de uma família de “negros sabonetes”, perfeitamente alinhados ao que se esperam deles, com seus cabelos alisados e cheirando a amônia, seus gestos contidos e discrição quase bajuladora, opta por ser o rebelde, o que destoa e se revolta.

Mas toda rebelião cobra a sua cota de sacrifício. Ele se distancia da família, que o enxerga como um fraco, um fracassado, após uma relação conturbada com o pai e um rompimento traumático com a mãe.

Tem por refúgio a Wênia, seu amor de escola, e o irmão Bruno, deputado federal, por quem nutre uma relação afetuosa e conflituosa. Mas sua especialidade é estragar até mesmo o que lhe resta de bom. Termina com Wênia e cai numa sequência de erros e brigas que o levam a fugir, quando acaba sendo sequestrado e termina num ringue de lutas clandestinas em Buenos Aires.

A única lógica possível é o ringue, a luta. eu retornei à essência primária do bicho homem e me tornei um embrião suíno. O primitivo que unicamente vive para sobreviver. Vim ao mundo buscando um sentido nas coisas, mas percebo que sou apenas uma coisa em meio a outras coisas. Não há sentido, nunca houve, e agora só busco respirar sob os holofotes do abismo.

É no ringue, sob a fama de perdedor, que sente ter a sua maior conquista. É amado, celebrado e aceito no mundo do entretenimento. Negro que diverte é um negro aceito. Ali ele é apenas o Porco Sucio.

Deixa de ser idiota! O preto iludido é o que mais se fode.

Bruno tece uma crítica racial contundente ao usar do absurdo, do excesso, do febril tão comum a sua prosa para escancarar o que efetivamente já está à nossa volta.

Há um léxico eólico nos negros, um ritmo exclusivo que as pessoas que não são negras não compartilham conosco e nunca entenderiam. Um conflito pelo ar, uma guerra pelo básico, uma luta pela respiração que faz com que nós tenhamos que falar mais alto, nos mostrar mais, sofrer de hipertensão, ser vistos como estressados ou monstros.

A bestialização do negro, desde os primórdios da ciência antropológica, transfere-se ao racismo estrutural, a aceitação do negro por duas vias comuns: a) a do embranquecimento, encarnada em Bruno, o irmão bem sucedido, que se adequou ao mundo dos brancos, ou; b) a do espetáculo, como a do irmão fracassado, descartado em sua humanidade para servir a um propósito que entretenha a elite.

O modo como faz disso parte das personagens, do enredo, de cada virada, soco, luta é um acerto inconteste. Tudo está a serviço da trama. O bizarro é um traço da normalidade, e a normalidade não passa de ilusão e aparência; uma forma de conformismo e omissão que torna alheio o que deveria incomodar a todos.

Não é difícil se omitir diante do horror e da brutalidade do “Açougue”, afinal o desejável não esconde o indesejável, mas cria modos cruéis e eficazes de eliminá-lo.

O talento de Bruno se prova na voz singular que construiu ao longo de sua obra, sem desprezar as próprias influências e referências (na literatura, cinema, música e artes plásticas), quando se mesclam para dar lugar a algo próprio e único.

Porco de Raça traz um caleidoscópio de influências e referências (literárias, acadêmicas e estéticas), que vai do pop a vanguarda, do mainstream ao underground. Tem Cruz e Souza, Machado de Assis, Chuck Palahniuk, Bret Easton Ellis, W. E. B. Du Bouis, Silvio Almeida, Ana Paula Maia, Nana Kwame Adjei-Brenyah, Djonga, Childish Gambino, Spike Lee, Jordan Peele, Bong Joon-ho, Park Chan-wook, Lars Von Trier, David Lynch, Mohamed Ali, Anderson Silva, Bad Brains, Devotos, Grande Otelo, Tião Macalé, dentre outras.

Não é exagero dizer que Bruno Ribeiro é mesmo singular.