20 de novembro de 2021

Dois

Lençóis de cetim, velas aromáticas, playlist no celular, garrafa de vinho. Tudo no jeito. Tem até um potinho de vidro pros comprimidos. Daí você me aparece, assim do nada, confundindo minhas certezas. Tanta gente pra vir me infernizar e arruinar esta noite... Por que logo você? Antes fosse a vizinha reclamando do barulho, um amigo questionando meus textões, mamãe procurando pelo filho desnaturado pra saber se estuda direitinho. Pra eles, pra qualquer outro, eu tinha o roteiro na ponta da língua, mas você continua me roubando palavras. Não consegui nem digitar uma resposta à altura da sua mensagem de voz abusada: “Preciso falar. Tô no elevador, subindo praí.” Quem você pensa que é? Eu quis te dar o troco, ignorar como tantas vezes fui ignorado, mas nem esse gostinho você pôde me dar; veio esmurrando a porta e gritando meu nome. De guarda baixa, te deixei invadir meu mundo mais uma vez. E pra quê? Pra relembrar nossas noites clandestinas, pra retomar de onde paramos? Não, é claro que não, você veio vomitar rancor em meus ouvidos. Luana rompeu o noivado? Foi isso que te trouxe de volta dos mortos? Caguei, Miguel! Perdi a conta de quantas vezes te cantei a pedra. Você e Luana, uma piada, das mais sem graça, de chorar de ruim. Aquela sonsa cansou da mentira? Ótimo pra ela. Demorou até. Agora você vir me dizer, logo pra mim... Quer saber? Foda-se. Desisti de tentar te convencer. Escolheu o faz-de-contas? O azar é seu. Não tem consolo, pena, nem porra nenhuma; a verdade que eu soprava nos seus ouvidos surdos morreu, você a assassinou. Só quero que você vá embora, Miguel, por que não vai e me deixa pôr um fim nisso? Eu tinha superado, sem nenhum sobressalto, nem mesmo seu nome me passava na cabeça. Agora olha pra mim, tremendo de ódio!, tendo que lidar com suas merdas outra vez: minha vida parece música em loop, tormento infinito; revivo as distrações, a impaciência, as indecisões... Que vida? Eu nunca soube mesmo o que é isso. Só vivi de verdade naquelas nossas noites. Agora sua volta desentranha isso... Essa... Convicção que apenas cortes profundos e sangue em torrentes me revelaram, mas isso foi antes, de você, de nós. Já pensei que nossa história daria livro, filme, música; hoje sei que ela não vale nem uma merda de um like. Você aí tagarelando... É demais pra minha cabeça. Sua voz se perde nos meus pensamentos. Quanto tempo faz, semanas, meses? O fim, o início, parece tudo tão longe, como se separados por anos: o anúncio ridículo do seu noivado com Luana – quem decide a vida aos dezessete, porra? –, o momento derradeiro em que você me renegou e a si próprio, e a noite em que nossas almas se conectaram, se lembra?, a própria Luana te apresentou ao grupo, foi numa dessas nossas festas sem propósito, desculpas pra afogar demônios em álcool, aliviar frustrações, saciar desejos. Eu adorava esses encontros, as chances que proporcionavam: jogar na cara tudo aquilo que, por medo ou vergonha, não se admite pra si mesmo. Não é qualquer um que sabe lidar com gente como eu; a maioria dos amigos apenas me tolera, sabe-se lá por quais razões interesseiras, mas eu não ligo, estou acostumado, é parte de quem sou. Se tenho algo a dizer, digo na lata; tanto faz se dizem que o faço por pura maldade. Naquela noite, eu abria a boca e o seu rosto se transfigurava; suas caretas incrédulas eram hilárias. Mas vi algo no seu olhar, uma admiração tão gritante que me incomodou, ainda hoje não sei bem por quê. Talvez já fosse uma faísca de sentimento, mas pra mim era novo, precisei dividir aquele desconforto: na minha vez no jogo de bêbados do momento, dei um jeito de relacionar a resenha da semana à tragédia da minha vil existência. A turma sacou de cara: eu queria chocar. Sou desses. Gosto de forçar a barra, de perturbar sentidos. Hoje você sabe bem disso, mas naquela noite era só o inocente namoradinho de Luana. Te guiei pela espiral insana da minha infância. Contei tudo. Falei do canalha do meu padrasto, dos horrores que fez comigo, de como e quando me assumi pra toda a família, com meu namorado a tiracolo, ali, no tradicional churrasco de domingo; meu padrasto inerte, incapaz de uma ameaça sequer. O porco de pé, parado, me encarando, depois saindo, cabisbaixo, metido num ar de vergonha. Era bem possível que ele se culpasse pela viadagem do enteado; acho até que a suspeita o corroía desde muito antes da noite em que, de faca em punho, eu ameacei furar os olhos dele se me tocasse de novo. Não fiz questão de explicar pra ele que o cu não tem nada a ver com as calças. Qualquer trauma que a cabeça doente dele carregasse me satisfaria. Ainda assim, eu esperava uma reação, qualquer uma, eu queria, precisava de uma reação. Puto covarde. Sem ter como me encarar, ele escolheu a saída mais fácil. O que veio depois não me afetou. Não fui ao velório. Ninguém em casa estranhou. Engraçado como tudo volta agora, enquanto você ainda tagarela aí sobre como Luana era sua “salvação”. Na verdade, não é engraçado. Carrego as imagens sempre comigo; revisito todos os dias, quase sem querer. Os terapeutas dizem que é uma questão de tempo, que quando meu coração estiver aberto ao perdão, pra meu padrasto, pra mim mesmo, daí tudo vai embora, eu vou me curar. Farsantes. Quem disse que eu quero esquecer? Não me arrependo do que fiz, de nada do que aconteceu. Nunca lamento. Aprendo, sigo em frente. Lembro que não consegui o que queria naquela noite: ao invés de chocado, você se fascinou por minha história: apenas dois anos mais velho e com tanto peso nos ombros, não foi o que você disse? Só que não era apenas fascínio, era identificação. Sim, foi essa a razão do desconforto, do que senti quando te vi entrando pela porta: familiaridade. É o que devem sentir as almas afins. Você escorregou, confirmando o que sabíamos: disse que se fosse contigo seu pai te mataria e ao seu namorado no churrasco mesmo, na frente de todos; talvez sobrasse até pra sua mãe por ter dado à luz um filho gay. Seu velho, teimoso feito mula, que nunca estava errado, ele mataria a todos e nunca cogitaria pular na frente de um ônibus. Se o filho tinha saído enviesado, a culpa não era dele. O mundo acabaria antes que ele admitisse a culpa por qualquer coisa que fosse. E os olhares sobre você, todos estranhando aquele papo, Luana culpando a bebida; você notou, tratou de se explicar, disse que se fosse o caso de ser gay e ter um namorado, o que não era, obviamente, e foi mudando de assunto. Luana desconversando, dizendo que você era mestre em dar pauta para a zoeira, que se confundia nas ideias. Mas saquei logo a real: você perdia o filtro; pra perder a compostura e sair do armário faltava pouco, doses, uns estímulos, a oportunidade, eu decidi te fornecer tudo isso! E com o tempo você cedeu, não resistiu muito, não podia nem queria; você via, sentia e queria o mesmo que eu. Enquanto você zanza aí pela sala, os olhos mareados de frustração, mesmo depois de tudo, as lembranças de nossos momentos me traem, meu coração afrouxa. Chega de escutar. Por que está aqui, Miguel? Luana termina o noivado e você me procura, quando poderia ir a qualquer outro lugar. Eu sei por quê. Engulo o orgulho e, outra vez, repito o que você já sabe, cada palavra. E agora não consigo evitar tocar os seus cabelos, sussurrar tranquilidade ao seu ouvido, mergulhar nos seus olhos, ver neles o mesmo desejo, a mesma confusão que por muito tempo vi no espelho. Beijando... Como acabamos nos beijando? Sinto as lágrimas contra meu rosto. São suas? Nossas? Perco a noção do tempo, de tudo... Não, não se afaste. Já antecipo sua raiva, as palavras ásperas, sua corrida para fora da minha vida. Mas você me surpreende de novo: enfia a cabeça entre as mãos, se encolhe no sofá, chora feito um bebê que acaba de deixar a proteção do útero. Chora pelo que sabe que o mundo nos reserva? Seu corpo convulsiona, as palavras saem com dor, emboladas, entre dentes: as palavras que sempre esperei escutar de você. Eu também te amo, Miguel, mais do que nunca. Não ligue pra Luana, ela tem família; não ligue pra seu pai com suas convenções pré-históricas; quem é que casa em igreja hoje em dia? Não, ele nunca vai te aceitar, mas o que importa? Pare de negar, de dizer que seu pai vai te matar, que não teremos sossego, que a vida será um inferno. Escute-me, sinta meu carinho, acredite quando digo que, na verdade, nada disso é importante, não há nada nessa vida nem nesse mundo que valha tanto quanto este momento, esta energia que flui entre nós, o sentimento que compartilhamos. Isso é maior, mais forte do que qualquer coisa; é algo espiritual, de além desta realidade nojenta, é o próprio infinito. A vida não é boa o bastante pra nós, ela não nos merece. Chore, sim... Lágrimas de resignação são puras e boas, eu sei, já as experimentei. Enfim você aceita a verdade: não pode me recusar. Deixe que as ilusões caiam, enxergue nosso caminho. Estou aqui, vamos juntos. Miguel, nunca te imaginei tão frágil, um anjo caído, como eu; você assim, tão honesto, talvez pela primeira vez na vida. Te quero. Se enrosque comigo nos lençóis. Só me deixa mudar essa playlist. Aqui não cabem mais canções amargas.

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T. K. Pereira é escritor e tradutor, autor de “Vozes” (Caos e Letras), do qual o conto “Dois” faz parte. Foi finalista do prêmio Brasil em Prosa da Amazon e d’O Globo com o conto “Doses de orgulho e vergonha”. Organizou a coletânea digital gratuita “Conte Outra Vez: 30 contos inspirados em canções de Raul Seixas”, e os projetos Fotos e Grafias e 7 coisas que aprendi, acervo com mais de 100 depoimentos de escritores. Site oficial do autor: https://tkpereira.com.br