Com ou sem boom, a literatura latino-americana segue conquistando leitores
Quando se fala sobre literatura latino-americana é comum que logo venha a lembrança de nomes que despontaram com o chamado boom latino-americano, movimento ocorrido nas décadas de 1960 e 1970, e encabeçado pelos escritores Julio Cortázar (Argentina), Carlos Fuentes (México), Mario Vargas Llosa (Peru) e Gabriel García Márquez (Colômbia), que catapultou a literatura latino-americana mundo à fora, apresentando autoras e autores do México à Argentina. Nomes como Ernesto Sabato (Argentina), Isabel Allende (Chile), Alfredo Bryce Echenique (Peru), Elena Poniatowska (México), Augusto Roa Bastos (Paraguai), Jorge Ibargüengoitia (México), Alejo Carpentier (Cuba); Manuel Puig (Argentina), José Donoso (Chile), Laura Esquivel (México), Juan Carlos Onetti (Uruguai), María Luisa Bombal (Chile), Guillermo Cabrera Infante (Cuba) e Juan Rulfo (México) são alguns associados ao movimento e que, em maior ou menor medida, foram traduzidos e publicados por aqui.
Por outros lado, se o boom latino-americanos reveleou também omitiu nomes como os do peruano Julio Ramón Ribeyro e da mexicana Elena Garro, até há pouco, ilustres desconhecidos do leitor brasileiro. Apesar de ter uma obra consistente e elogiada, o peruano teve apenas dois títulos publicados no Brasil, a coletânea de contos Só para fumantes, com prefácio de Alfredo Bryce Echenique, e seleção, tradução e posfácio de Laura Janina Hosiasson, lançada pela extinta Cosac Naify, em 2007; e o Prosas Apátridas, pela coleção Otra Língua, organizada Joca Reiners Terron e lançado pela Rocco, em 2016. A Moinhos acabou de anunciar o lançamento de Urubus sem penas, obra-prima de Ribeyro, lançada com exclusividade para os assinates do Clube Tortilla, e, em breve, disponível para todos os leitores. Por sua vez, a mexicana teve apenas uma obra traduzida, o monumental As lembranças do Porvir, considerado o percurssor do realismo mágico que se tornou uma marca do boom latino-americano, que chegou aos leitores brasileiros apenas em 2018 pela paranaense Arte & Letra. Aliás, as pequenas e médias editoras têm sido decisivas para uma maior diversidade de publicação de autoras e autores latino-americanos no mercado brasileiro.
A literatura latino-americana sempre teve lugar entre as publicações brasileiras, mesmo incipiente, e uma par de vezes mediada por sua descoberta pelo mercado europeu, em especial, o espanhol, ou por prêmios internacionais. Além das grandes editoras, destaco o trabalho da Benvirá, que publicou diversos títulos, como o O obsceno pássaro da noite, de José Donosso, que estava esgotado à época, e Pássaros na Boca, o elogiado livro da argentina Samanta Schweblin, ambos esgotados, mesmo tendo sido lançados em 2015. Como destacou Paulo Lannes, editor da Pinnard, em episódio do podcast Lavadeiras do São Francisco, esse foi um movimento breve. Aliás, a Samanta Schweblin tem chegado a novos leitores e leitoras com a publicação de Kentukis, pela Fósforo, apesar de ter ainda outra publicação no Brasil, a novela Distância de Resgate, lançada em 2016, pela Record, e recém-adaptada para o Netflix. Nomes como o da argentina Selva Almada, que estreou no Brasil com a excelente novela O vento que arrasa, publicada pela Cosac Naify, em 2015, sem nova edição, foi incorporado ao catálogo da Todavia, que já lançou a obra de não-ficção Garotas Mortas e a novela Não é um rio. A Intrínseca também tem em seu catálogo escritoras latino-americanas, como a conhecida Mariana Enríquez, autora do excepcional As coisas que perdemos no fogo, da novela Este é o mar e do romance Nossa parte de noite, além de nome menos conhecidos como os da colombiana Pilar Quintana e a venezuelana Karina Sainz Borgo.
Há também títulos que passaram em brancas nuvens, como o maravilhoso Para onde vão os cavalos quando morrem, do argentino Marcelo Britos, pela cearense Substânsia. O romance nos conduz ao cenário da Guerra do Paraguai, ocorrida entre os anos de 1864 a 1870, trazendo nomes reais de políticos e militares, batalhas e assentamentos nos levando a crer que estamos diante de um romance histórico, mas consegue remeter, a partir da chaga aberta pelo conflito, o quanto isso reverbera e significa para a condição política e socioeconônima da América do Sul. O livro é ambicioso em seu esforço de reconstrução alegórica do presente, demarcando as desigualdade, ameaças autoritárias e as desastrosas consequências de políticas neoliberais aplicadas no final do século XX na região, e, ainda, pelo fim do bipolarização da Guerra Fria. Um livro que, por tudo que dissemos, merece ser lido.
Entretanto, são as editoras pequenas e médias quem tem feito um trabalho precioso de curadoria e promovido ampla bibliodiversidade (temática e de origem) das publicações mais recentes. Nada de novo, haja vista que quando se trata de literatura brasileira contemporânea são essas mesmas editoras quem têm nos oferecido novos nomes e sotaques, sexualidades e variedade temática. E seu sucesso em indicações e prêmios diversos não permite que sejam ignoradas como se fez outrora. Não há surpresa em perceber que estejam estreitando laços com editoras e autores e autoras latino-americanos. Assim, editoras como Mundaréu, Moinhos, Instante, Pinnard, Relicário, Jabuticaba, Arte & Letra, ParaLeLo13S, Oficina Raquel, Pallas, Elefante, dentre outras, têm publicado autores e autoras latino-americanos contemporâneos ou não, abrindo diálogos com obras que pensam e repensam nossa condição latino-americana, e promovendo uma bibliodiversidade que outrora não se percebia nas publicações de grandes editoras, ainda dominadas pela literatura em língua inglesa ou por obras oriundas da Europa.
A baiana ParaLeLo13S, por exemplo, acabou de lançar Poso Wells, o elogiado romance da equatoriana Gabriela Alemán, e publicado originalmente em uma pequena editora equatoriana. Elogiado por Alejandro Zambra, que o descreve como um romance “brilhante, ousado, sem dúvida brincalhão e ao mesmo tempo sombrio e amargo. Um livro verdadeiramente inesquecível”, e por Samanta Schweblin, para quem "Poso Wells é irônico, audacioso e feroz". O romance borra as linhas entre a sátira, a ficção científica e o romance policial, e mergulha com um jornalista que viaja para o bairro fictício de Poso Wells para tentar desvendar um mistério sobre mulheres desaparecidas, e acaba se embrulhando em um submundo de políticos corruptos e especuladores de terras em uma viagem que permeia o fantástico e o real. Alemán, em entrevista à Folha de S. Paulo, disse: "Eu queria que este fosse um romance por entregas, publicado em jornal, como fazia Charles Dickens, no século 19, como se faziam com histórias policiais no passado. Levei os primeiros capítulos a um importante jornal de Quito, mas me disseram que 'não' como se eu estivesse louca. Então fui para casa e terminei o livro."
A Mundaéu tem se destacado pelas obras publicadas, sob a curadoria afiada de Silvia Naschenveng. As publicações comportam nomes consagrados, como o do uruguaio Mario Benedetti, a novos nomes como o da chilena Andrea Jeftanovic, e seu ótimo Não aceite caramelos de estranhos, e da mexicana Fernanda Melchor, com o excepcional Temporada de Furacões, vencedor de diversos prêmios e finalista do Man Booker Prize International 2020.
Aliás, o destaque de autoras lationa-americanas em premiações, incluindo o prestigioso Man Booker Prize International, tem chamado à atenção para elas, a ponto de se falar em um novo boom latino-americano. Nomes como o da argentina Ariana Harwicz, com sua elogiada trilogia da paixão, publicada pela Instante; de Gabriela Cabezón Câmara, e seu monumental As aventuras da China Iron, publicado pela Moinhos; da equatoriana María Fernanda Ampuerro, e a crueza de seus contos em Rinha de galos, publicado pela Moinhos, são alguns dos que tem se destacado entre essas premiações e chegado aos leitores brasileiros.
A desconstrução da América Latina dominada pelo masculino e a oitiva de outras vozes e lugares é um ponto em comum dessas publicações. A força dos contos das chilenas Andrea Jeftanovic e Alejandra Costamagna, por exemplo, representam bem essa tomada de protagonismo feminina, ofertando um outro olhar para os dilemas e contradições de um continente centrado na figura do macho. Em As aventuras da China Iron, a argentina Gabriela Cabezón Câmara, parte do Martin Fierro para subverter o mito fundador da Argentina, trazendo a perspectiva de uma china citada no poema como esposa de Fierro, que foge da brutalidade e descobre o amor, a sexualidade, o pampa na carroça de uma inglesa que cruza o pampa argentino para encontrar-se com o marido que a espera numa estância. O conflito entre o civilizado e o selvagem, o esforço em europeizar o país, apagando as raízes mais profundas da diversidade de seus povos nativos, despontam no romance com astúcia, humor e profundidade. A dimensão antropológica, o antipositivismo, a inversão de um processo colonizador (histórico, cultural, religioso, jurídico) compõe o deslocamento dessas duas mulheres pelo pampa. O romance é um verdadeiro desbunde e um exemplo da potência da escrita latino-americana. Esse esforço de reconstrução da memória e da história colonial também se destacam em obras como O país da canela, do colombiano William Ospina, vencedor do Prêmio Rômulo Gallegos 2009, publicado pela Mundaréu; e em obras que voltam o olhar para às ditaduras no continente, a exemplo dos romances chilenos Kramp, de María José Ferrada, e Space Invaders, de Nona Fernández, ambos publicadas pela Moinhos.
Nem só da literatura contemporânea vive essa feliz leva de publicações. Há também o resgate de autoras e autores, obras inéditas ou há muito esgotadas no mercado brasileiro. E o caso da argentina Sara Gallardo, uma das mais proeminentes escritoras argentinas da geração dos 1950, ladeada por nomes como o de Silvina Ocampo, que teve duas obras em 2021: EISEJUAZ, lançada pela Relicário, data de 1971, e; Janeiro, seu romance de estreia, pela Moinhos.
A editora Pinnard destaca-se por esse movimento de resgate. A editora já trouxe ao público brasileiro obras como Dona Bárbara, do peruano Rómulo Gallegos, com nova tradução e edição caprichada (capa dura, guarda e marcadores, ao estilo da extinta Cosac Naify) e uma coletânea de poemas da vencedora do Nobel de Literatura, Gabriela Mistral. As obras foram lançadas por bem-sucedidas campanhas no Catarse, o que demonstra o interesse do leitor brasileiro pela literatura dos hermanos e hermanas. A editora está na fase de entrega de duas novas obras que compartilham o tema do autoristarismo latino-americanos, O aniversário de Juan Àngel, do uruguaiu Mario Benedetti, e Eu, o Supremo, do araguaio Augusto Roa Bastos. E já anunciou para o próximo ano, Homens de Milho, romance do também vencedor do Nobel de Literatura, Miguel Àngel Asturias.
No momento, está com campanha aberta para A família do comendador, romance inédito no Brasil, de Juana Manso (1819-1875), considerada até hoje uma das mulheres latino-americanas mais emblemáticas do século XIX. A escritora nascida na Argentina foi poeta, tradutora, jornalista, educadora e “precursora” do feminismo, não só em seu país de origem como também no Uruguai e no Brasil. Contrária ao governo militar argentino de Juan Manuel de Rosas (1793-1877), sofreu perseguição política e acabou se exilando no Rio de Janeiro em 1842 e lá permanece até 1853, data em que o governo de Rosas é, enfim, derrubado na Argentina. Conforme sinopse da editora, o romance narra a história da rica família do comendador Gabriel das Neves, regida pela mão-de-ferro de sua mãe, Maria das Neves, e por sua ambiciosa esposa, dona Carolina, com quem teve três filhos – Pedro, Gabriela e Mariquita – cujo destinos foram traçados segundo o interesse da avó. A situação familiar se desestabiliza quando a matriarca decide que a neta Gabriela deve se casar com o tio Juan – que teve filho com uma das escravas e que acabou por enlouquecer de tanto ser espancado pela própria mãe por querer abolir a escravidão dentro de seu ambiente familiar. A jovem se revolta com a decisão da avó e foge, refugiando-se em um convento, fazendo com que cada um dos membros da família se mobilize, obrigando o acerto de contas do passado para que o futuro não se resulte na dissolução total dos Neves.
Como podemos perceber por esta pequena amostra, com modinha ou sem modinha, com ou sem novo boom, a literatura latino-ameicana tem avançado pelo país conquistando leitoras e leitores, e fazendo reverberar seus sotaques vivências, experiências, história, revelando nossas parecências e distinções.
Sem dúvida, deixo muitas lacunas. Não cheguei a mencionar nomes que gosto e/ou observo com certa curiosidade, alguns ainda não publicados e outros em vias de ser, caso da fabulosa Hebe Uhart, anuncaiada pela Roça Nova. E outros já publicados como Belén López Peiró, lançada pela Elefante; Roque Larraquy, Mariana Travacio, Carla Maliandi e Humberto Ballesteros, lançados pela Moinhos; Carolina Tobar, lançada pela Jabuticaba, dentre outros. Mas literatura é fluxo, e não poderia oferecer nada além de um mero recorte.