2 de setembro de 2021

Palavras de piedade mágica

Palavras são bengalas, são ambulâncias, são larva fervente. Vez em quando são psicotrópicos. São rede debaixo de coqueiro. Uso palavras durante meus naufrágios. Uso palavras para desagoniar do congestionamento dos meus pensamentos. Uso palavras para descansar de meus apocalipses. 

Aprendi a usar palavras bem cedo. Gostava de escrever em diários minhas ansiedades e solidões de filha única. Escondia palavras soltas em papeizinhos atrás do armário para que ninguém achasse. Checava de vez em quando para me assegurar de que ainda estariam lá. Ao longo do tempo, descobri que nenhuma distração mundana preenchia o vácuo doloroso tão bem quanto elas. Nestes momentos, as palavras tornaram-se enfermeiras caridosas cuidando de mim, um indefeso soldado ferido em plena guerra mundial. 

Palavras têm a função do chapéu de um mágico de circo. Quando tudo já foi dito, tem sempre uma combinação inexplorada entre verbos e substantivos, fazendo com que o coelho saia da cartola, e emocione a plateia. Tem sempre um viés novo, uma plateia nova. Tem sempre uma emoção escondida na combinação, não necessariamente mais óbvia. Tem sempre um mágico que, pegando na aba do chapéu e, girando-a de uma certa maneira, consegue a proeza. Será técnica, será necessidade de fazer sair o coelho, será ego em busca de público, será tudo ilusão, ou talvez nada disso.  

Acredito que palavras nos acontecem ao nascer. E quando se constata esta realidade, nunca mais é possível separar-se delas. Ficam impregnadas no DNA, viram grupo sanguíneo em RG. Palavras são sujeitos dominantes, centralizadores, carentes. Querem atenção a todo custo, quando precisam passar, não pedem licença. Durante muito tempo, achei que seria mais forte, e dominaria o jorro das palavras na minha vida. Cometi a atrocidade de adormecê-las, e ainda me aterroriza a perspectiva do que podem fazer comigo. Uns anos atrás, quando a última porta se fechou na minha cara, as palavras voltaram como a piedade dos olhos de uma estátua de nossa senhora. Não deu outra; o jeito foi ajoelhar e redimir para o milagre. Voltei para a minha função de mágico. Às vezes, falta circo. Vez ou outra, o coelho foge. Meu chapéu, envelhecido do manuseio, perde-se facilmente na escuridão do armário. A calça do meu terno já não fecha o zíper. Mas a mágica, acontece com ou sem circo, com ou sem coelho, mas a cada palavra que o mágico em mim se concede o privilégio de escrever.  

por Caroline Costa