30 de agosto de 2021

Caiu na rede, é peixe

 

De rede em rede

Na capital belo-horizontina, um assassino em série está na ativa. Em seu cardápio, jovens mulheres ruivas vestidas de amarelo, desovadas em rios. Sua assinatura? Um chaveiro do Homem-Aranha, alcunha pela qual passa a ser chamado na imprensa.

Este é um trabalho para o detetive Romero Puntel, cuja infernal paz é interrompida por um telefonema de Malloy Bocão, com a notícia da chegada de “peixe fresco” ao IML.

Romero Puntel é um ex-delegado convicto – ou nem tanto –, recolhido à inatividade por frustração profissional. Casos não solucionados, impunidades e politicagens compõem a paisagem de sua desilusão. Decidido a voltar a viver (ou assim ele o diz), Puntel tenta, há anos, transicionar para cozinheiro, enólogo, dançarino, amante, sem sucesso.

Este é o Romero Puntel de O rio dos vestidos amarelos, segundo romance do ficcionista, poeta e ensaísta mineiro Marcus Freitas, lançando este ano pela editora Impressões de Minas. A personagem, introduzida em Peixe morto (Autêntica, 2008), retorna como um aposentado em busca de uma nova paixão, que passe longe de defuntos, formol e pólvora.

Mas, como nada é tão viciante quanto as aversões, o caso do Homem-Aranha leva Puntel de volta “para casa”. Começa então uma caçada alucinante – ou seria uma “pescada”? –, em que o detetive é o maior peixe, e o leitor tampouco escapa. A narrativa corre traçando a cartografia da rede fluvial de Belo Horizonte, um mundo underground que dá acesso ao passado, ao que o progresso converteu em avesso.

O detetive Puntel é um ouvinte desse “lado B” estrangulado pela asfalto, e que por isso mesmo precisa emergir, soar em liberdade. Não à toa, o romance de Freitas é aquático, engrenado por uma solidariedade entre chuvas e rios e que se traduz em enchentes, trazendo à tona a “Belorizontem” proustiana de Puntel: águas, ruas, cinemas, botequins, galerias, em sua forma original.

E se a verdade sobre o passado é que ele é vivo e corrente, Puntel também precisa enfrentar a sua própria, a que lhe diz que “a rede preguiçosa pra deitar” não lhe inspira qualquer paixão. Da rede ociosa à rede dos rios, e dela à do herói aracnídeo da Marvel, desagua-se enfim na única rede a que Puntel está realmente preso: a web.

Um retrato da internet

“De todas as paixões que tentou desenvolver, a de navegar madrugada afora na rede o tomou aos poucos, sem que ele percebesse que cedia aos seus encantos, até se tornar avassaladora. No começo, entrava nos chats e nos sites de relacionamento meio sem jeito, sem embocadura para conversa. (...) Aprendeu também, com a filha Diana, a como encontrar e salvar velhos filmes, antigos vídeos de artistas e cantores. Gostava não apenas de ouvir, mas de traduzir as letras, ou pelo menos os títulos das canções (...) Na sua vida pacata de agora, seu único risco se escondia na rede” (FREITAS, 2021, p. 13-14).

Eis a protagonista da pescada de Romero Puntel – a internet. Sempre em companhia dela, o mapa da aventura vai sendo cortado por fatos vivenciados no mundo concreto e por devaneios e delírios de Puntel. Na superfície do texto, eles aparecem vestidos – ou nem tanto – como as deduções e hipóteses que acompanham o ofício do detetive.

Duas são assim as camadas de vivências na narrativa, a se interpenetrarem: a primeira, de vivências superficiais, vividas à luz do dia (lado A); a segunda, de vivências subterrâneas, aquelas que, como um rio, continuam a correr em trabalho silencioso, a despeito do concreto e das canalizações fajutas (lado B). As últimas dizem respeito às incontáveis horas noturnas que Puntel passa diante da tela, à cata...de quê mesmo?

De sua considerável experiência de homem “analógico”, pouco ou nada se aproveita nesse novo mundo. Assim, o novato da rede se vê levado pela forte correnteza digital, sem galho ou raiz onde se agarrar. Nem o caso do Homem-Aranha, que novamente lhe dá um propósito, pode resistir à maciez traiçoeira dessa deriva que atira o navegante de janela em janela, com efeito entorpecente e amnésico.

Por essa rede furada e desconexa, arremedo de método para o detetive incorrigível, volta e meia passam ícones culturais de outrora, como gibis de super-herói, filmes e, em especial, madeleines sonoras – canções. As personagens que povoam os mundos dessas obras, biográficas ou ficcionais, ressurgem desambientadas nas telas cavadas por Puntel, como fantasmas de tempos mortos – ou nem tanto –, com quem ele fraterniza.

Essa realidade paralela, feita das ternuras de Puntel para com os falecidos e esquecidos (“ossos do ofício”), é cultivada sob a frequente desculpa de que resgatar esta ou aquela canção, este ou aquele motivo, é importante para criar fundo à sua “pesquisa” sobre o caso do serial-killer à solta na capital mineira. Assim, Puntel nos faz ondular por trilhas sonoras planetárias, que vão do Arrudas ao Sena, do das Velhas ao Mississipi, do Onça ao Jordão.

Um roteiro de canções

Dentre elas estão “Um girassol da cor do seu cabelo”, do Clube da Esquina, hits do rock sessentista (como “A horse with no name”, “House of the Rising Sun”, “Scarborough Fair”), “How insensitive”, na voz da francesa Claudine Longet, e outras tantas, embalando a “cinza das horas” de Puntel. O leitor ganha, por ocasião da trama policial, um banquete para os ouvidos e demais sentidos, incluindo “presuntos”, águas fétidas, ovos cozidos e ervas aromáticas.

Enquanto Puntel “sabicha” (leia-se, investiga), as canções invadem seus sonhos perturbados, como infiltrações. São elas que emprestam moldura e rota à narrativa, saturando-a de significados/pistas que o leitor é convidado – como se espera de todo bom romance de detetive – a “pescar”. E, como todo rio, O Rio dos vestidos amarelos inunda, oferecendo-nos ainda uma experiência às suas margens: a playlist de Romero Puntel no Spotify (e que pode ser conferida aqui: https://open.spotify.com/playlist/2UWtVQ1Tfh1ahj2FgS0h7k).

Para engrossar o caldo imersivo, há ainda duas listas no YouTube com os clipes que Puntel vê, que o leitor pode acessar pelos QR codes incluídos nos marcadores que acompanham o livro.

Cada lista contém seis canções, como nas duas faces de um LP.

Esse transbordamento da história, que só faz devolver o leitor para dentro dela mesma, é coerente com uma obra que busca dialogar com elementos da cultura que extravasam a literatura e a letra. Entre eles, estão o cinema, a música e as HQs, mas sobretudo a rede, a imaterial e onipresente internet, peça-chave da atmosfera do thriller.

O Rio dos vestidos amarelos figura entre as primeiras obras de ficção, no âmbito da literatura brasileira, a reconhecerem e tematizarem o mundo digital e o perfil de buscas a que ele dá curso. Romero Puntel é o exemplar perfeito dessa vítima da internet de acesso popular, retratada em seus primeiros dias, aqueles das salas de bate-papo (chat), entre os anos 1990 e 2000.

Isso porque o detetive é justamente alguém incapaz de aposentar o ímpeto da busca, uma espécie de vício maldito. Seu passado é um rio repleto de cadáveres malcheirosos, mas é o único que ele sabe navegar. Pelas “bocas de lobo” – as canções –, as entranhas de Puntel, nem tão profundas, batem papo com ele, repetindo: não há mesmo espaço para outra paixão.

O rio dos vestidos amarelos, com o belíssimo projeto gráfico de Elza Silveira, pode ser adquirido no site da editora Impressões de Minas: https://impressoesdeminas.com.br/produto/o-rio-dos-vestidos-amarelos/.

Playlist no Spotify: https://open.spotify.com/playlist/2UWtVQ1Tfh1ahj2FgS0h7k.

Playlist de clipes no YouTube : https://www.youtube.com/channel/UChc6evDTfs7ph1f2xmYrv3Q

Referências

FREITAS, Marcus. O rio dos vestidos amarelos. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2021.

Natália Campos é mineira de Belo Horizonte, é doutora em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, escritora, revisora de textos e professora. Além da experiência de quase duas décadas com revisão e preparação de livros, produz conteúdo sobre educação, literatura, cinema e mercado editorial. Nessa travessia-travessura pelas letras, a única regra é desfrutar o texto. É autora de Desinfinito (2017) e O guru da Lopes Chaves (2016). Está entre os 12 novos poetas brasileiros contemplados na antologia bilíngue Inventar la felicidade – Muestra de la poesía brasileña reciente (2016), organizada por Fabrício Marques e Tarso de Melo.