17 de janeiro de 2021

A inexorável essência das sogras

Sogra é um bicho esquisito. Quase sempre atrapalha; distorce a realidade para ter sempre razão. Invadem como tratores potentes em campos de soja próximos à colheita. Se for italiana como a minha, o negócio é brabo. Sogra italiana é coisa de vidas passadas e que só o espiritismo talvez algum dia explique.

Minha sogra siciliana cresceu no pós-guerra. Viu seu país devastado pelo conflito e passou perto da fome. Escapou. Seu pai, campesino, semeava trigo em pequenas frações de terra de uma Itália recém saída do fascismo. Empreendedor, montou uma padaria em casa com ajuda da família para ter uma renda extra. Levantavam-se às três da manhã para amassarem o pão. Às sete da manhã, o pão precisava estar pronto e as pessoas vinham em casa comprá-lo. O trigo era moído à noite para evitar perseguições. Transportado em burros. Alimentos eram racionados e adquiridos mediante apresentação de uma caderneta dada a cada família.

Eu, recém-chegada do Brasil emergente, daquele Brasil fácil, americanizado, fútil, pré-cozido, terceirizado, desmemoriado, mal resolvido, precisei pensar bem qual seria um tema que poderia me fazer entrar em algum orifício remoto do coração da mamma. Precisava ser um tiro certeiro, sem segundas chances. Pensei: mamma feliz, filhinho em êxtase, casamento nutrido e nora deixada em paz. Durante o banho, nos meus “momentos banheiro”, e em cada lavagem de louça, lá estava eu dedicando toda a minha massa encefálica para temas possíveis. Pensei em tipos de sabão para lavar roupas; talvez falar daqueles detergentes mais delicados, específicos para lavar lãs.; depois pensei em novas formas de macarrão mais adaptados a certos tipos de molhos, ou talvez qual o supermercado que oferece melhores descontos. Nada alcançava o patamar necessário, ela obviamente já sabia de tudo isso. Foi no limite da exaustão que eu lembrei do óbvio. Pão!

Pedi que me ensinasse a sua arte. Primeiro, disse que não tinha tempo e que tinha coisas mais importantes a fazer. Insisti. Insisti. Insisti. A esperança foi minguando. Um dia, o indomável de minha sogra combatente cedeu para a minha maciez tropical. O legado da família panificante foi transplantado em mim durante um ritual emocionante. Minha sogra e eu finalmente estabelecemos um cordão umbilical feito de farinha. Fui adiante. Comprei livros. Fiz cursos. Apaixonei. Desmistifiquei algumas de suas crenças como “pão bom tem que sovar e suar muito”. Enquanto ela continua acreditando que a tradição tem sempre razão, eu continuo lembrando-a que a vida menos sofrida às vezes é melhor.

A farinha nos uniu e nos une até hoje. Nossos telefonemas são sempre recheados de troca-troca de receitas, de discussões acirradas nas quais ela sempre acha que tem razão. E eu deixo que seja assim. O coração dela em “modalidade calma” é mais seguro de manusear.

Nesta história de brincar de casinha com a minha sogra, aprendi da beleza dos momentos de escassez. O pão era o filé mignon de Black Angus, a melhor das picanhas. O pão bastava para ser celebrado. Como ela costuma dizer, “éramos pobres e famintos, mas éramos melhores”. Agora na pandemia, distribuo pães de esperança durante o lockdown. Envio bilhetinhos a quem recebe e me nutro de sorrisos. Atesto a minha resistência de que não acabaremos tão cedo.  

Sabe deus como, mas arrisco a dizer que a maciez tropical talvez tenha conquistado o coração da Signora Scavuzzo.

Ùrsula Zufrieden