22 de julho de 2020

Duas elegias nordestinas e suas comunidades (re)imaginadas - sobre a memória em Joedson e Thiago Lia Fook

Elegias do país do Sanhauá - Joedson (Moinhos, 2017)

 

“Começo quando o dia começa
eu ainda estou dormindo ou nem dormi ainda
mas o pedreiro acorda, não tem insônia nem sonho
orgulhoso de sua virilidade
com um sentimento de liberdade
que os filósofos não podem supor
e só um mendigo pode superar 

se levanta pra erguer os pilares da terra
e paredes morenas como sua pele
que talvez tenha câncer um dia de tanto sol diariamente
sem armadura e apenas um boné por capacete
o cavaleiro medieval com empoladeira e talhadeira
mas o pedreiro não se preocupa com doenças

ele tem a saúde perfeita
e come como ninguém de colher, de pá
o frio almoço com cimento
e bebe a aguardente, não pra que seu fígado tenha cirrose
e fuma, não pra que seus pulmões tenham enfisema
e fode, não pra que seu pênis tenha gonorreia
entre os esqueletos da casa alheia, o seu músculo tem uma folga
pra viver, não pra fugir da vida.”

 

E assim o livro começa. Acompanha o processo de consecução de Elegias do País do Sanhauá (Editora Moinhos, 2017) uma elegia da experiência de um poeta por um país imaginado, uma comunidade imaginada ou reimaginada e elegíaca como aquelas que pertencem aos grandes poetas, a exemplo do poeta Gerardo Mello Mourão e seu ótimo O País dos Mourões. É reimaginada porque, segundo o poeta, foi este país que o criou. E Joedson, à sua própria maneira, embate-se com uma dura batalha, a de imprimir força, ritmo, constância e narrativa às paredes, janelas, dores, amores e experiências de ter sido parido e criado em um país chamado Sanhauá, um país que, antes de tudo, sente seu:

“12 

Eu vim de Sanhauá, País dos Silvas
de um ponto equidistante entre o Bar da Rola e a Rua do Cabaré
onfalo do mundo, travessa, travessia que não acaba
e havia putas, prostitutas profissionais
e as amadoras minhas amigas
hetaíras pros héteros
de quantos benefícios à civilização”

 

É possível que haja um ritmo para aqueles que vão se embrenhar nas matas, nas ruas, nas casas e nas vidas dos personagens do país do Sanhauá. Aqui, trescala a experiências de homens e mulheres, de sentimentos e de amarguras, da construção de um cotidiano árido. Mas um cotidiano que colhe, na dureza da vida feita em tijolos, os elementos de doçura próprios da experiência de um poeta com o domínio de sua própria erudição e da poesia clássica; narrada, concentrada, em versos que impactam pela força corporal da imagem. A saber,

“10

Todos os preconceitos aprendi por amor aos meus amigos
que tinham todos os defeitos e eram perfeitos como eu

se inteligentes ou burros demais
se moles ou briguentos demais
se negros ou brancos demais
embora na falta destes qualquer amarelo servia
se gordos ou magros demais
embora aqueles faltassem
e não por culpa do pouco apetite
se altos ou baixos demais
se afeminados, sem chance
podiam ter tempo pra nascer, mas não tinham espaço pra crescer
se pobres demais ou de menos
se ricos também seriam se conhecêssemos um”

A poesia de Joedson é refém do corpo e de suas extensões na vida e na concretude da experiência. Um materialista por excelência. É possível ainda que o leitor perceba nas imagens deste livro uma narrativa do aprendizado. Como se o protagonista descobrisse a si próprio pela memória, o corpo ganha forma; suas relações se encontram para além do presente e se encastelam num passado redivivo de sugestões e experiências. A cada verso, o poeta redescobre uma sensação, uma emoção, uma memória afetiva, que se expressa pelo olhar, pela voz, pelo fato. Em terra de Sanhauá, são as sensações que não carecem de explicações.

Curiosamente, o poeta, ou antes sua voz narrativa, elenca atores para o teatro. Coloca-se no lugar de pedreiros, meninos, amigos e demais personagens com a força de quem quer mostrar uma realidade que sente sua. O país do Sanhauá, esta associação entre pessoas e uma comunidade afetiva, territorialidade propriamente dita, tem nos versos deste livro um mapa dos afetos, mas também da caricatura. Assim, Joedson busca fazer história com a própria história, fazer um país a partir do seu bairro, fazer uma luta em prol de si e a partir de si mesmo. Nessa física autopedagogia não à toa os mitos, deuses e lendas são terrenas, são boatos, são histórias, vivenciadas no cotidiano e nas lutas do dia a dia. Com alegria e com tristeza:

“16

 Que milagre há num rosto amigo pra nos abrir o sorriso
mesmo depois de tantos anos esmaecendo na mente
e os que nunca mais poderei ver
será que desaparecerão pra sempre?”

 

 Por fim, não vai nessas palavras uma leitura fechada. O que tento fazer é um mapa de um mapa já preexistente. Um passeio pelo país do Sanhauá se sai bem-sucedido porque sensível às qualidades do poeta e seu talento para a formação de imagens, compositor de um ritmo “bruto” de escrever, de uma sensibilidade acurada para um passeio no terreno de si e na criação. Reflexos de um país que antes de tudo habita o corpo e a memória.

 

ANTIGAMENTE ERA MELHOR – Thiago Lia Fook (Editora Moinhos, 2019)

Se bem conheço Thiago, este livro não vem de hoje. É resultado de uma longa e excruciante caminhada pelo campo da literatura, e aqui uso o termo‘excruciante’ como se conotasse a simbologia de uma cruz. E não é sem propósito. Cogito que este livro vem sendo escrito, pensado e reescrito por, no mínimo, cinco anos ou mais. Tal é o cuidado de chegar a cada palavra que, mais do que fale, signifique um panteão de sentimentos e de homenagens aos personagens, este livro de contos, “Antigamente era melhor”, é um livro que traz como unidade histórias de ouvir e de lembrar sentado nas cadeiras de madeira do quintal de uma antiga e ventilada casa, nos arrabaldes de Campina Grande ou de qualquer outra capital (lembrando que este termo “capital” é proposital de minha parte).

Caminha com a prosa de “Antigamente era melhor” uma profundidade leve, algo que se vê muito em Luiz Vilela, Lygia Fagundes Telles, Murilo Rubião e nas crônicas ou contos de Carlos Drummond de Andrade. Na verdade, estou aqui lutando para não citar Machado. Porque, conhecendo o autor, já se torna desnecessário de tão evidente dizer que este é uma influência mais do que literária, mas espiritual. O importante é que o narrador deste livro fala pela boca de muitos e, enquanto personagem, parece viver histórias que se contam sem o auxílio da tecnologia, ainda que ela esteja lá presente. Esquecida a escanteio, como bem merece ser.

Se pensássemos no título do livro como um argumento cinematográfico, o advérbio “antigamente” possui um caráter fantasmagórico. O livro abre com um conto sobre fantasmas, “Assombração”, e segue apresentando-nos a tios, tias, primos e parentes que se querem originais pela personalidade e que trescalam de uma escolha hábil das palavras, como se a vida destes não dependesse do narrador. A construção destes personagens me parece uma obra temporal. Eles materializam o tempo como se o tempo do mundo inteiro fosse deles. E aí talvez resida a moral dessas tantas histórias: o “antigamente era melhor” do título só existe dentro dos personagens e não fora. O narrador, um mero ouvido para detectar o “antigamente” nessas narrativas é que se responsabiliza pelo ofício de dar ao tempo o espaço ou a moldura capaz de receber os personagens. Ele sofre, mas também se emociona.

Quem puder abrir “Antigamente era melhor” terá contato com uma prosa urdida com talento, apesar da sensação de que algumas histórias não terminam. Por isso, não é um livro para ser lido rapidamente. Para cada passagem, é preciso reparar no modo como os personagens se deixam conhecer preenchendo todos os espaços em branco do livro de modo espacialmente simbólico. Existe inovação na linguagem, mas também contenção de meios para seguir o plano da obra em constituir-se como histórias de antigamente. Logo, o “antigamente” talvez se transforme em mais do que uma proposta, mas uma estética. Nisso, o autor brinca com a compreensão externa do que é a literatura de antigamente, mas o faz de maneira nova. Não há o abuso do discurso direto, do “Era uma vez” ou da fábula. Verifica-se, antes disso, o uso linguisticamente trabalhado da fábula para formar narrativas que, embora pareçam fábulas, não o são. Para os escritores e leitores atentos, vale a pena perceber o modo como a condução da ação é vista pelo ponto de vista unicamente temporal dos personagens, e não daquele que as ouve. Ou seja, esse esforço de unidade temporal que se vê não só nos olhos dos personagens também se encontra na proposta do livro em termos de linguagem.

Ao final, resta entender que “Antigamente era melhor” sobrevive de maneira perene na lembrança. A memória, enquanto estilo, é o tema da maioria das narrativas que se apresentam e nos abraçam como uma xícara de café em um fim de tarde. A metáfora também não é sem propósito. Ainda que muitos livros se dediquem a uma volta ao modo de narrar de “antigamente”, à pretexto de uma reação muitas vezes irrefletida contra as formas modernas e os novos modos de fazer literatura, “Antigamente era melhor” se arrisca a assumir que sabe de onde veio e para onde vai. Tanto melhor para a literatura e para nós leitores.

 

EPÍLOGO: ELEGIAS, AS COMUNIDADES (RE)IMAGINADAS E A MEMÓRIA

“31

Há tempo pra tudo
e o melhor é o mais antigo
pra se aprender primeiro e esquecer por último
e não se entregar a qualquer novidade metida a besta

eu gosto da antiguidade clássica
tanto da minha quanto dos outros
meu maior prazer é experimentar coisas velhas
que não perdem o viço
como o verso e o sexo

(Elegias do País do Sanhauá)”

 

 As duas resenhas acima foram escritas neste intervalo entre 2017 e 2019. Ambos editados pela Editora Moinhos, Thiago Lia Fook e Joedson, respectivamente, demonstram duas maneiras diferentes de se apropriar da experiência, de suas comunidades e da memória. Um, através das experiências redivivas de um passado que se torna presente na memória dos afetos, do corpo e do país do Sanhauá; outro, ao impingir ao “antigamente” um retrato do passado tornado presente vivo no afeto, na cidade e em como os personagens dão vida ao estilo dos contos narrados.

Uso o termo comunidade imaginada retirado do politólogo Benedict Anderson, em seu livro homônimo Comunidades imaginadas. Observo nele um resquício de teoria literária incipiente, embora este seja um livro voltado para a compreensão da formação nacional pelo prisma de como esta se difunde em valores seculares e vínculos imaginários entre os cidadãos. A correlação não é em vão. Em Thiago Lia Fook e Joedson, os vínculos imaginários dos personagens dão vida ao texto, como é uma característica conquistada pela narrativas ficcionais (mais presente no gênero romance), segundo alerta Benedict Anderson; característica importante, portanto, para conferir às narrativas um dos esteios para o nascimento do sentimento de comunidade imaginada atribuído às nações.

Como na geografia dos afetos, os personagens de Joedson dão vida a um país do Sanhauá em que as experiências do corpo, da vida diária, das limitações e de suas sensações são relembradas no eito do cotidiano, do dia-a-dia do pedreiro e de outros mais. Em Thiago Lia Fook, os personagens são interiorizados pela sua própria experiência do passado, enredados em histórias afetivas e pensamentos sorrateiros sobre como o passado se organiza no plano dos afetos e das histórias de vida. Ambos, à sua maneira, dão vida a uma comunidade; se um pela materialidade do cotidiano, outro pelo idealismo do passado incrustrado nos personagens.

Por fim, sobrevive duas maneiras de ler as elegias nordestinas e suas comunidades imaginadas. Se um pela via do corpo e do instante, outro pela via da ironia e da saudade. As duas pela memória. A partir dela, segundo Maurice Halbwachs, no livro A Memória Coletiva, uma memória coletiva é baseada em eventos vividos em grupo e, mesmo quando não há a presença material de um grupo, os valores cultuados sobrevivem e reavivam uma memória compartilhada por experiências comuns. E são estas experiências comuns e suas territorialidades que fazem a memória fincar raízes na imaginação e render alguns frutos.

 

João Matias nasceu em Juazeiro do Norte (CE) e reside em João Pessoa (PB). É escritor, sociólogo e professor. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente na mesma área na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) em Guarabira (PB). Autor de “O Lugar dos Dissidentes” (Editora Escaleras, 2019), dentre outros. Organizou e co-editou, junto com Wander Shirukaya, pela editora Marca de Fantasia (UFPB), o livro “Diacronia: ensaios de comunicação, cultura e ficção científica”. Junto da produtora Vermelho Profundo, contribuiu no argumento do longa-metragem O Nó do Diabo (2018). Escreve, ensaia, pesquisa e organiza coleções sobre literatura, sociologia, política e ficção científica na interface Brasil-África.