5 de maio de 2020

Bráulio Tavares e a ficção científica: ou o desejo mítico da autodescoberta enquanto criatura

Uma das muitas contribuições que se tem em mente quando pensamos no trabalho de Bráulio Tavares para a ficção científica remete ao compêndio “O que é ficção científica”, editado pela Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense pelos idos de 1986. Nela, Bráulio amplia a definição de ficção científica em relação àquela impressão que sempre temos quando pensamos em FC (sigla que ele próprio me ensinou a usar): carros voadores, máquinas de teletransporte e Guerra nas Estrelas. Segundo ele, no livro acima referenciado, mais do que isso, a FC dialoga com a nossa sensação de “estranheza diante do mundo, crise e reafirmação da própria identidade, impulso para enfrentar grandes desafios e mudar o mundo”. A seguir, ele complementa: “todos esses elementos se fundem na fc [ficcção científica] e lhe dão essa perpétua inquietação adolescente, como diz o inglês Peter Nicholls”.

Assim, como quem deseja descobrir o universo da FC na humanidade, Bráulio se divide em dois: o pesquisador-antologista e o escritor. Neste ensaio, pretendo me deter sobre (1) a coletânea Detetives do Sobrenatural, publicada pela editora Casa da Palavra em 2014, (2) a coletânea de contos A Espinha Dorsal da Memória, editada em 1990 pela Editora Caminho, de Portugal, e (3) no trabalho do autor enquanto roteirista de O Homem Que Desafiou o Diabo, dirigido por Moacyr Góes e lançado em 2007. Que fio condutor há entre essas três obras, distantes em épocas e propostas supostamente tão distintas? Costumo pensar que, entre outras coisas, o autor. Cheguei a trabalhar com o BT (o vício da sigla me pegou) em um projeto de longa-metragem para a produtora Vermelho Profundo em meados de 2015; neste projeto, conversamos sobre mitos, fantasias e histórias que vagam uma Campina Grande (sua cidade de origem) esquecida, algo utópica, permeada por contos de terror e repleta de personagens inusitados. Uma Campina Grande tão estranha, e talvez mais assustadora, que a cidade Campinoigrandes, cujo nome é o da cidade dos sábios em seu romance A Máquina Voadora, publicado pela Editora Rocco em 1994. Ora, vejam só, com tantas histórias para contar, como comprimir todas elas em um só autor?

Desafio-me a ler BT contra si mesmo. Neste meu enredo protoficcional, BT, enquanto personagem, cresce sob um chapéu semelhante ao dos drugues do clássico Laranja Mecânica (o livro de Ray Bradury, mas sobretudo o filme de Kubrick) e me observa sentado na primeira fileira de um importante evento literário do brejo paraibano. “Vou tomar cuidado para não ser toltchocado”, penso. Lendo-o contra si, ouso afirmar, mediante os fios dos olhos calmos do meu interlocutor, que BT carrega consigo algo do Tio Abner, personagem do conto O Anjo do Senhor, de Melville Davisson Post, ao incorporar um senso de retidão tal que o faz enxergar, nas narrativas constitutivas de Detetives do Sobrenatural, um viés mais do que de exploração da temática do sobrenatural e do misterioso através da narrativa fantástica. BT traz para o gênero ficção científica uma derivação, ou antes enraizamento, em narrativas que não são tão próprias do realismo fantástico, mas que frequentemente abordam a ficção científica, o realismo policial ou, como o próprio BT descreve, o western (o faroeste). Ou seja, para BT, quanto mais a ficção científica se desprende de amarras supostamente definidoras, os escritores e seus leitores são conduzidos para terrenos impremeditados de outros gêneros: o policial, o horror, o western, o regionalismo. Como um antologista ciente do seu trabalho, BT dialoga Tio Abner com Manuelzão, de Guimarães Rosa, e D. Pedro Garcia-Barreto, de Ariano Suassuna. BT os faz sentar numa mesa de bar, em redor de uma boa cachaça, e ainda nos faz sentir o cheiro, a vibe.

Meu leitor se saracoteia no banco da praça. Por um momento, retira o seu chapéu de drugue e ameaça chamar a sua trupe para uma noite “horror show”. Mas antes, espere aí. Ainda não acabou. No conto “O cavalo do mundo invisível” de William Hope Hodgson, escolhido por BT para sua coletânea Destetives do Sobrenatural, o convite para a ficção científica tanto vem sob a sombra da narrativa de mistério como também pelo viés do ceticismo. Explico: Carnacki, o detetive criado por William Hope Hodgson, é um detetive cético. Nas palavras de BT, “um dos mais metódicos e práticos detetives do sobrenatural”. Veja só, Carnacki se utiliza do amparo da tecnologia, ou seja, de máquinas fotográficas para a descoberta de suas hipóteses sempre céticas sobre fenômenos que rodeiam o sobrenatural e o mistério. Segundo o antologista, este aspecto traz para a narrativa um “misto de racionalidade e ocultismo”. Não era sem propósito, a crença na ciência e no método científico estava em alta na Europa de fins do século XIX e início do século XX; conclusões científicas (e fechadas para outras interpretações) eram comuns nos estudos sociais, naturais e fenomenológicos. Tanto as máquinas fotográficas do detetive Carnacki revelavam assombrações falsas como eram o fio condutor para intrincadas tramas de roubos e charlatões. Uma aposta, antes de tudo, na ciência como método. Não à toa, segundo Carnacki, sobre suas próprias investigações de fenômenos sobrenaturais “...devo admitir que em 99% dos casos tudo não passa de pretensão e fantasia. Mas, o centésimo caso! Ah, se não fosse pelo centésimo, eu teria muito poucas histórias para contar...”.

Antes que venha um suspiro do interlocutor, afirmo que os autores da coletânea Detetives do Sobrenatural dialogam com o chamado pensamento social do século XIX e XX, ao confrontar os princípios científicos advindos da influência do positivismo contra as suposições sobre ocultismo e transcendentalismo da realidade. O debate “realidade x ocultismo” era fervilhante. Afinal, autores positivistas famosos, como Augusto Comte, defendiam a ciência e a razão acima de todas as crenças e preceitos. Até que ponto o antologista dialoga com essas influências e o faz sob o intento de dar a elas um significado histórico e social? BT se reveste do próprio Carnacki para nos dizer que a ficção científica também é a ficção das expectativas futuras e culturais de uma época? Ora, esta sim é a “ciência do centésimo”, evocando a fala anterior do próprio detetive ‘hodgsoniano’. Ao falarmos sobre o futuro, não perdemos de vista os acontecimentos e as crenças do presente. Não quero aqui encompridar a conversa sobre Carnacki, mas gostaria de destacar que “O Cavalo do Invisível” é um excelente conto. E que BT, ao recuperar a memória do autor, William Hope Hogdson, também tem muito a nos dizer sobre cultura, história e ficção científica.

Começo a ficar com medo. Toda essa conversa não agrada ao interlocutor que já ouve, ensimesmado, as primeiras notas da 5ª sinfonia de Beethoven. Vou falar sobre o “A espinha dorsal da memória”. Este livro de contos recebeu o prêmio Nova de melhor livro de um autor brasileiro em 1990. Posteriormente, sua edição brasileira somente atravessou o oceano em 1996 e teve na Editora Rocco o porto seguro. Uma mercadoria que hoje está em falta. Segundo Cesar Silva, pesquisador e editor do Almanaque da Arte Fantástica Brasileira, o livro, contendo 12 contos, consolidou a identidade da chamada Segunda Onda da Ficção Científica brasileira, entre eles contos que se nomeiam como “Sympathy for the devil”, vencedor o prêmio Nova em 1989, “História de Maldum, o mensageiro”, “Príncipe das sombras” e “Mestre-de-armas”. E lá estão algumas das referências, ou antes deferências, do autor ao enraizamento brasileiro na ficção científica: a menção a Guimarães Rosa e seu Grande Sertão: Veredas em “Mundo Fantasmo”, além da realidade brasileira em “Mare tenebrarum”.

E é aqui, pousando os olhos desta vez mais calmos do meu interlocutor sobre a realidade brasileira, que lemos o autor contra si mesmo. Em O Homem que Desafiou o Diabo, filme de Moacyr Góes, vemos que BT não perde de lançar mão dos mitos nacionais para, à seu próprio modo, impingir o lado de redescoberta de uma realidade cultural na ficção científica. Ora, como ele próprio apresenta em seu livro O Que É Ficção Científica, se este gênero enfrenta supostas crises e tem por fito reafirmar uma identidade, é a identidade nacional ainda “indescoberta” que a Bráulio interesse revelar com o filme de Moacyr Góes e com contos selecionados em seu A Espinha Dorsal da Memória, junto das menções a Guimarães Rosa e Ariano Suassuna no compêndio Detetives do Sobrenatural. No filme de Moacyr Góes, há uma coletânea de contos da história oral e mítica do nordeste. Esta ficção científica que busca um constante “acerto de contas” com sua história, cultura e identidade, perfaz a narrativa e os trabalhos de BT com a dimensão de um acerto de contas histórico. Porém, ao mesmo tempo em que se reinventa, o autor, tornado criatura, ousa brincar, distrair, inovar e locupletar o encontro da ficção científica com a tradição popular porque ela, nem no Brasil, nem sequer nos Estados Unidos ou na Inglaterra, esteve exatamente distante da cultura americana ou inglesa.

Quando juntamos os elementos partícipes da ficção científica em outros gêneros, como o romance policial, o horror ou o realismo fantástico, BT assume a figura da criatura que se quer participante num gênero universal com toques e elementos indissociáveis da sua realidade local. A minha fala já parece excessiva, e o senhor com chapéu à la Laranja Mecânica, corporificado como um leitor/interlocutor, já se inquieta. BT experimenta a FC em seu trabalho, na sua obra e nos roteiros. Como afirma diversos materiais com que tive contato, como pesquisa prévia para este ensaio, BT é o senhor do fantástico e do popular que muitos procuram por conhecer, seja travestido de um drugue à la Laranja Mecânica, seja de um cantador popular com rimas e versos que somente perdem para a maneira sempre atenta, e nacional por excelência, com que urde a aproximação da ficção científica de suas raízes históricas, culturais e, por que não dizer, populares. Dentro e fora do nordeste mítico e do nordeste real, o acerto de contas deste Tio Abner com o que há de real e local na ficção científica não perde para o que nela há de universal e humano; de Guimarães Rosa à William Hope Hodgson, de Ariano Suassuna à Melville Davisson Post.

Como disse um outro leitor: nada mal para um trezeano.

 

 

João Matias nasceu em Juazeiro do Norte (CE) e reside em João Pessoa (PB). É escritor, sociólogo e professor. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente na mesma área na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) em Guarabira (PB). Autor de “O Lugar dos Dissidentes” (Editora Escaleras, 2019), dentre outros. Organizou e co-editou, junto com Wander Shirukaya, pela editora Marca de Fantasia (UFPB), o livro “Diacronia: ensaios de comunicação, cultura e ficção científica”. Junto da produtora Vermelho Profundo, contribuiu no argumento do longa-metragem O Nó do Diabo (2018). Escreve, ensaia, pesquisa e organiza coleções sobre literatura, sociologia, política e ficção científica na interface Brasil-África.