9 de abril de 2020

Língua e literatura: entre “Duna” e “Moby Dick”

As possibilidades da língua é o que une um romance ambientado em um planeta-deserto e a tradução de um clássico de ficção náutica

 

Só agora, praticamente às vésperas do lançamento do remake cinematomográfico dirigido por Denis Villeneuve, foi que me dispus a ler o calhamaço de quase 700 páginas que é “Duna”, primeiro livro da série homônima escrita pelo americano Frank Herbert, ambientado no futuro distante em um planeta-deserto chamado Arrakis onde a água é o bem mais escasso e mais precioso. “Duna” segue a trajetória de Paul Artreides, um jovem burguês de 15 anos que vê sua família destruída por rivais e é lançado no coração do deserto, onde, contra todas as inúmeras adversidades, habitam os nativos do planeta.

A construção de mundos inteiramente estrangeiros ao nosso está longe de ser algo difícil de se ver nos gêneros da ficção científica e da fantasia. Poucos, no entanto, possuem a dimensão de Arrakis. A trama política, seus conflitos e suas múltiplas traições formam um enredo costumeiramente comparado a “Game of Thrones”, mas o mundo não está ali como plano de fundo para que esses eventos se desenrolem – pelo contrário: ele é o início e o fim desses eventos. Arrakis não é secundário aos personagens que atravessam sua terra – é um elemento protagonista. Tanto quanto Paul Artreides – nascido em Caladan, planeta semelhante à Terra em sua abundância de água e de recursos naturais – é um estranho em uma terra estranha, também o leitor assume esse mesmo papel ao começar a descobrir a construção de mundo de Herbert, que não se atém jamais ao simples ou ao redutivo, recusando-se sempre ao plano-fundismo. Assim, mais do que uma história sobre política, “Duna” também surge, talvez até mesmo principalmente, como uma história sobre cultura.

Arrakis tem uma ecologia complexa. Sob seus desertos vivem vermes gigantes e mortíferos, mas ainda assim os nativos fremen nascem, existem, se reproduzem e morrem ali, aprendendo a quebrar o ritmo de seus passos para assemelharem-se ao som inconstante da areia e não atraírem a atenção dos predadores para si. Suas vidas giram em torno da água, ou melhor, da escassez dela, e também ao redor dela giram seus costumes e seus rituais: os fremen não enterram seus mortos, mas sim removem a água de seu corpo em uma cerimônia para que ela possa ser reaproveitada pelo resto do grupo. Não são tampouco “tribais” – possuem uma tecnologia considerável, e se valem dela em seus trajes, produzidos para evitar uma desidratação acelerada. Mas o aspecto cultural mais fascinante para mim emerge na relação criada por Herbert entre os nativos de Arrakis e a língua.

Uma cena rápida em especial salta à memória: Paul Artreides, ainda em sua vida palacial, começa a entreter os convidados do banquete de seu pai com uma história que ouviu em Caladan sobre um homem que se afogou. Uma convidada, nativa de Arrakis, pergunta o significado da palavra “afogar”. Paul precisa pausar, refletir por um instante e então explicar que “afogar-se” significa “morrer sem ar por estar imerso em uma grande quantidade de água”, ao que a convidada responde “que maneira interessante de morrer”. Para habitantes de um lugar onde até mesmo um cuspe é visto como líquido significativo, imaginar uma quantidade de água grande o suficiente para uma morte por afogamento é tão inconcebível que um verbo para algo do tipo sequer consta de seu vocabulário.

É precisamente nas palavras para se falar de água que “Duna”, ironicamente, encontra “Moby Dick”, o romance clássico de Herman Melville.

Não poderia existir distância cultural maior do que entre Ahab e um fremen de Arrakis. A vida do capitão criado por Melville não apenas é passada majoritariamente no mar, como seus pensamentos são povoados por tudo aquilo que é ligado a ele: termos náuticos, expressões de marinheiros, a imensidão do mar, os peixes, a baleia que o assombra. Nenhuma dessas coisas faz parte do léxico dos arrakinos, e a princípio só podem ser concebíveis nos sonhos de terraformação mais utópicos de seus idealistas.

No campo da linguagem, no entanto, há uma semelhança que liga o povo fictício de Frank Herbert a um povo real de nosso próprio mundo, e essa semelhança tem como ponte precisamente o romance de Melville. Trata-se dos macedônios.

Em 2017, a literatura perdeu um de seus mais brilhantes tradutores, Ognen Čemerski, então com apenas 42 anos de idade. Nascido na Macedônia, seu maior legado foi a tradução de “Moby Dick” para sua língua materna, um trabalho que lhe custou doze anos de dedicação por um motivo simples: a distância entre os macedônios e o mar durante os últimos séculos.

Naturalmente, os macedônios possuem sua palavra para o mar. No entanto, sendo uma população étnica fincada à terra e sem litoral, eles não possuíam um histórico de navegação e, portanto, careciam de terminologia marítima, o que incluía tanto os nomes utilizados para partes de navios quanto para outros aspectos da navegação e da vida de marinheiros. O desafio de Čemerski foi, então, o de construir todo um vocabulário macedônio ainda inexistente através de uma análise das origens dos termos em inglês e de seus equivalentes em outras línguas eslavas. Ele encontrou essas equivalências em palavras macedônias associadas ao trabalho artesanal, já que toda a tecnologia usada em navios havia tido origem em terra firme. A recepção da tradução foi positiva e consagrou Čemerski em sua área. Através de seu trabalho, a literatura perfurou o espaço entre duas línguas e duas culturas, e permitiu que a população da Macedônia, histórica e geograficamente isolada do mar, o atravessasse ao lado de Ahab em busca de uma baleia.

“Duna” é, em grande parte, uma história sobre sociedade e cultura tanto quanto – ou, ouso dizer, mais do que – é uma história sobre política. É, assim, também uma história sobre língua e tradução, sobre essa ponte criada por Čemerski entre um povo familiarizado com a maresia e um familiarizado à terra (à areia) – a ponte que Paul Artreides de Caladan atravessa, e que apenas por atravessá-la em “Duna” é que ele é capaz de sobreviver em Arrakis, com o povo de Arrakis. Em busca de sua vingança, Ahab corta o mar em seu navio; Paul Artreides corta o deserto sobre as costas de um verme.

No espaço tanto da ficção quanto do trabalho externo que a envolve, a literatura nos permite imaginar mundos onde nossas palavras e nossos conceitos mais básicos não constam de dicionários inteiros. O mesmo transborda para a realidade, onde a literatura cria os espaços férteis para que nasçam palavras e conceitos estranhos a nós. É possível, assim, que um personagem fictício de Herbert imagine a morte por afogamento (que maneira interessante de morrer!) com o mesmo espanto com que um macedônio imagina as empreitadas insanas de Ahab em seu navio baleeiro e nós, ao ler “Duna”, imaginamos o espanto de um arrakino perante a ideia de um mar aberto, de água potável abundante, de chuva. Espanto metalinguístico sobre espanto metalinguístico: a literatura é a língua à serviço da imaginação tanto quanto é imaginação à serviço da língua.

 

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Isabor Quintiere (1994) nasceu em João Pessoa, onde reside. É graduada em Letras - Inglês e mestranda em Literatura pela UFPB. Autora do livro de contos "A cor humana" (2018, Ed. Escaleras), encontra inspiração para sua prosa principalmente na literatura fantástica latino-americana e na ficção científica.