7 de abril de 2020

Os limites de Roberto Menezes

A literatura para Roberto Menezes é um playground de possibilidades. Ele desafia os limites e as convenções e não tem medo de tratar dos temas mais difíceis e espinhosos. E é por isso que eu admiro tanto o seu projeto literário, focado em bagunçar com as estruturas tradicionais da trama e em construir excelentes personagens.

O romance “Trago comigo as dores de todos os homens” é a consolidação da sua literatura, é o momento em que o artista conhece seu ofício e o domina. Aqui, Menezes consegue unir seu experimento na linguagem com uma trama tão ousada quanto seus adjetivos e frases de efeito. Falando em adjetivos, recurso que muitos dizem que o escritor deve evitar usar, neste livro e nos seus anteriores, como “Julho é um bom mês pra morrer” e “Palavras que devoram lágrimas”, Menezes os domina como ninguém. Ele é o protótipo de escritor que prova por A mais B que é possível quebrar as regras, fazendo o que um bom artista deve fazer: inventar suas próprias regras.

Quando se pinta uma obra de arte, por exemplo, dizem que o bom pintor deve esconder as suas pinceladas. Essa imagem serve para a literatura também: mostre, não conte. Corte adjetivo e advérbios. Prosa limpa, bem cuidada, cada palavra no seu devido lugar. A palavra justa de Flaubert. Não mostre a costura da sua prosa, seja invisível. Menezes pega tudo isso e diz: como é que é, meu amigo? Ele usa a palavra desajustada, o barroco enquanto potência, o grito como forma, expõe costura, mete metáforas eloquentes, frases feitas, sua literatura é uma autópsia a céu aberto. Ele não esconde suas pinceladas e sabe como ninguém como utilizar esses excessos com esmero.

“Trago comigo as dores de todos os homens” tem um dos protagonistas mais polêmicos da sua bibliografia. Gustavo Inácio Monte, um poeta celebrado na cena literária contemporânea nacional, que representa não só uma voz ousada e provocadora, mas também a persona do típico escritor celebrado no país. O ego maior que o talento. As bravatas, o umbigo gigante. Aquele que já teve dias melhores em sua carreira e alimenta consigo um remorso, um ranço muito grande de tudo e todos. E fora a crítica ao meio literário que o autor faz com esse personagem, vemos também uma crítica ao modo de agir de nós, homens. A masculinidade tóxica permeia o livro para que no final ela exploda em um mar de revelações e impacto estético e temático. “Sou o homem mais covarde do mundo, macho zeta, do tipo de macho que herdará o reino dos céus”, diz Gustavo. A relação de Gustavo Inácio Monte com a advogada Silvia Rodrigues, com os filhos dela Marcos e Márcia, são bem construídas, por mais que em alguns momentos eu tenha ficado com a sensação de estar faltando algo ali. Talvez um pouco mais de trama, de suspense, atmosfera.

Em “Trago comigo as dores de todos os homens” e em outros livros de Menezes, eu vejo muito o conceito de experiência-limite, trabalhado por Foucault, Blanchot, Battaile, entre outros. Uma experiência intensa que coloca o protagonista na beira do abismo, mas ele não se mostra em nenhum momento derrotado em estar passando por tanto caos, por tantas situações limites, extremas. É uma linha tênue entre a intensidade do momento com o êxtase e o delírio, o medo, o prazer, o sublime e o profano, e a pulsão. Essa palavra define bem as obras de Menezes: pulsão. Fascinação pela ponta da lâmina. O misticismo do agora. Euforia. Tensão. Linguagem. Risco. Eis uma palavra que falta em muitos livros celebrados da literatura brasileira: risco.

Sempre digo que o escritor deve andar na corda bamba, brincar com o perigo, apertar o botão que diz “não toque”. E Roberto Menezes cumpre com esses requisitos como ninguém. “Trago comigo as dores de todos os homens” é um livro essencial para quem gosta de boa literatura, para quem gosta de ser desafiado e para quem gosta de sair da zona de conforto.