5 de março de 2020

A BARATA

Na obra de McEwan, Hamlet está para Enclausurado (2016) como A Metamorfose está para este A Barata. Se, naquele primeiro, o escritor logrou ir além do eventual exercício da paráfrase - patinando, cá e lá, na tentativa recorrente de justificar o seu narrador improvável -, nesta mais recente novela o paradigma kafkiano pesou sobre os seus ombros: e o coice da arma que o autor decidiu disparar foi violento.

Sátira de um drama por vezes cômico e patético (o Brexit, que se resolveu com valsa da despedida no Parlamento Europeu), a narrativa abre com a clássica circunstância do homem transformado em inseto após "despertar de sonhos intranquilos". Mas de um lado temos Gregor Samsa, um insignificante caixeiro viajante, do outro temos Jim Sam, a caricatura de Boris Johnson, um primeiro ministro com um senso inebriado de auto-importância fomentado por membros de sua equipe e seguidores de sua conta no Twitter.

A distinção, como dizer, faz toda a diferença. Enquanto a narrativa se perde em uma retórica política que tenta dar algum sentido ao "reversalismo", o projeto megalomaníaco e confuso de Sam (que faz com que ele se alterne entre os papéis de pária internacional e herói da própria nação), momentos ótimos são eclipsados. Como o telefonema que o primeiro ministro faz ao presidente americano e tenta mitigar sua simpatia - mais bolsonariamente barata do que nunca. Ou os diálogos que envolvem o responsável pela pasta internacional do governo, único membro aparentemente sensato do parlamento e voz dissonante dentro da política do "reversalismo".

Na história felizmente breve (em torno de cem páginas, tanto nas edições inglesas quanto nas brasileiras), são momentos pontuais como estes que de fato fazem valer a assinatura de um McEwan, que se sintoniza muito melhor às questões de sua época, por exemplo, quando se desloca ao futuro na ótima - e mais paciente - ficção científica Máquinas Como Eu (do ano passado).

A depender de McEwan a melhor sátira do Brexit continua sendo o próprio Brexit. E em tempos em que nem a ficção de Kafka parece tão kafkiana assim, ninguém haverá de culpá-lo.

 

A Barata

Ian McEwan

Editora: Cia. das Letras

Gênero: ficção

Ano de publicação: 2020

Número de páginas: 104

Preço: R$ 39,90