3 de março de 2020

Caminhos

FAUNA

Os dias se encurtam. A neblina enfeia o céu. A queda das folhas descobre o ninho desemaranhado pelas idas e vindas do pássaro solitário. Ele insiste em voltar. Folha a folha, todas gotejaram sob a tempestade. Os galhos de esquinas íngremes não acolhem, nem acaloram como quando sua mãe e seus irmãos estavam aqui competindo por espaço. Foram embora, assim feito o resto do povoado, para o noroeste dos instintos. O pássaro não sabe se foi o medo dos braços fraturados das árvores sem folhas. Não sabe se foi o medo dos trovões que rasuraram os céus na última tempestade. Ele insiste em ficar. Seu caminho é esse.

Para onde foram os pássaros da última trovejada? Não sabia. Não quis ir. Só, se aninha como pode nos destroços de sua manjedoura. Agora, no começo do inverno, em nada se parece com a alvenaria desenhada pela mãe — falta a mãe. Falta também o sol. Não lhe ensinaram o que é inverno.

Rareia a força nas asas. A fraqueza existe, mas exige um próximo voo, uma busca por sobrevida. Uma prece piada de submorte. Os que se foram não voltarão? E o frio e a neblina, quando devolverão o verão? As interrogações dessas perguntas caíram junto com a última folha da árvore. O frio e a neblina pesarão nos seus ombros até o fim. E ele nem sabe o que é o fim.

Anda a passos que não levam a lugar nenhum. Faminto. Entre as penas. Anda em círculos. No meio palmo de nada. No seu ninho. No equilíbrio do seu galho. Decide fazer o último voo, é mais uma queda. Não há o acaso aqui, há a certeza de que não se vai mais longe daqui. Aqui. O pássaro cai na soleira da árvore de raízes congeladas. Gelo em tudo onde se possa pisar. Um espelho que arde as patas. A noite vem, assombra o pássaro. O reflexo na sombra. A fome que o anoitece. O bico batendo na água empedrada.

Ao pé da árvore, rubrica o vidro duvidoso. Por trás do vidro, o passado que quer resgatar por teimosia. Quase aqui. Algum verde, algum verme, luzeiro falso. Cada segundo desperdiçado em cada bicada. Gota a gota despedaçada ao tentar rachar a janela. Do outro lado da camada de gelo, fartura, gordura para mais de uma estação, a extensão de suas horas, certeza de novos dias quentes, novas árvores, novos pássaros, novos ninhos. Mas esse diamante não é para o seu bico. Encurta mais seus dias não querer desistir.

O pássaro perde a aposta ao ficar. As patas se enraízam no gelo. Mesmo assim, o pássaro continua bicando, bicando, bicando, até que finalmente esquece de si. Logo se tornará, entre as folhas secas, só uma espécie de nada: ossos secos e penas secas. Torrado pelo sol da primavera que chegará logo a seguir.

 

***

 

FLORA

Primaveramente vem a brisa regada por uma força que se aninha por trás das montanhas. O sol, mero figurante para as pedras que assam, já existe desde que se pariu do nada. Dele vem a luz arremessada sobre as folhas. A luz toca na pele verde do mato. Alimenta. O mato aceita e se entrega ao sol e ao vento.

A brisa ou um lagarto traz a semente, que calha cair entre galhos e espinhos, fadada a se extinguir neste desaninho, mas como se dissesse: não esperam que nasça? eu nasço! Se anina. Bebe da lama. Da pedra, extrai substrato-proteína. E do rancor, deixa que seus ramos nascentes se embrenhem e incrustem entre as pedras. E assim nasce a raiz. E assim se infiltra pelo solo. Assim se instala. Entre galhos e espinhos.

Se vai o dia. Se vão os dias. E o sol corre e arde.

Logo já se vê um projeto do que será um arbusto. E custoso, sobe, catando o sol, respirando o dia e a noite, uivando à noite. Por anos, faz sombra para os bichos morrerem. Deles, come o adubo. E as pedras. Aos olhos do sol, não há mais pedras. Foram cobertas. O tronco deste arbusto as arrancou dos seus lugares. E após anos, depois de chuva, vento e verve, a semente mínima se torna gigante. Arbusto crescido, mas ainda virgem. Falta florescer.

Chega a época da florescência. De seus galhos, surgem brotoejas enverdecidas e arredondadas. A árvore de folhas novas rasga a pele da novidade em forma de caroço e por ela saem pétalas. Hóstias de cor de sangue se abrem circulares sobre a sua sexualidade recém-descoberta. Por toda árvore. O cheiro vai longe. As pétalas se esgueiram pesando sobre polens que vão na vaga no primeiro vagão de vento.  Se encaminham. Voam para fazer arder os olhos dos bichos, voam agarrados ao acaso à procura de outra florescência.

De outras flores, a gamela da flor que soltou o pólen recebe também o pólen. No anoitecer, as pétalas, até anteontem envaidecidas, se encolhem do seu rubor, e enviuvadas, suicidam para abraçar a causa dos bichos mortos e das folhas secas na cobertura do chão — a humildade sólida encobrindo as pedras.

O que resta de flor se encasula padecendo do mal do botão. De novo, protuberâncias. Mas estas não eclodem em flor.  A beleza se inibe enquanto a semente ou várias delas surgem da seiva, da brisa, do sol, do húmus. Dentro dos frutos. Os frutos verdes logo têm ascensão de cor, de vez; e depois maduros. Se embalofam presos à mãe até serem arrancados dela pelos pássaros, pelos morcegos, pelos roedores. Mastigados ali mesmo. Mas o que importa são as sementes. E elas vão dentro desses bichos que deixaram suas fezes em terreno fértil ou em pedras. Tanto faz, há muitas delas. Há muito mapa para semear.

A árvore cheia de novas flores. Uma hora vai deixar que os filhos que sobreviveram abraçados a ela caíam ao seu pé e se juntem aos cadáveres de folhas e pétalas. O fruto sobre a terra se abrirá e sua mãe o devorará.

Vem a brisa, vem o sol, e o ciclo. A mãe devora o filho. As folhas caem, seguem a caravana de novos polens de novas flores enviuvadas. Os frutos caem, as flores caem, e a árvore se alarga na cintura, dá mais sombra ao húmus. E protege do braseiro solar, as pedras que, numa certa primavera, quiseram devorar a semente primordial.