11 de dezembro de 2019

Declínio da utopia pessoal

O jornalista Altamir Tojal militou na resistência à ditadura e hoje atua como consultor de comunicação corporativa. Alguns elementos da sua trajetória pessoal foram utilizados para a construção do thriller político Faz que não vê, sua estréia no romance. Já decorrido algum tempo entre os anos de chumbo, o ressurgimento claudicante da democracia e os dias atuais, é possível pensar mais criticamente a relação entre esses períodos, de modo a se compreender melhor o cenário brasileiro contemporâneo. O livro narra esse processo de escoamento das utopias pelo ralo do pragmatismo destituído de ética.

Na Era Collor, Delano tem a função de intermediar uma negociação para um investimento milionário na Zona Portuária do Rio de Janeiro, envolvendo-se num emaranhado de interesses de políticos, empresários, sindicatos, além do crime organizado. Como resultado da tramoia, o protagonista é ameaçado de morte, simula o próprio sequestro e se refugia em Ponta da Esmeralda, um vilarejo isolado no Nordeste de onde conta a sua história.

No romance, as tentações e os vícios do mundo corporativo fagocitam os ideais de resistência e justiça, como se naturalmente processo histórico se encarregasse de suprimi-los. De forma rápida e vertiginosa – e eis que a narrativa de frases curtas se demonstra eficaz – o militante Delano se converte num yuppie gomalinado e financeiramente bem-sucedido. Como bem afirma Antonio Torres na orelha, o romance tem ritmo ágil, quase telegráfico, descrito como um roteiro de filme de suspense.

De fato, o aspecto formal das frases curtas, que em muitos livros soam gratuitamente a serviço de um modismo fragmentário, aqui casa bem com a ideia do romance. Durante o diálogo de Delano com uma deputada, enumera-se os assuntos testemunhados pelo sofá do gabinete: “Do contrabando e do tráfico à receptação e à lavagem de dinheiro. Proteção da polícia. Queima de arquivos. Ah, as licenças que o álcool dá! Línguas soltas. A conversa virou sussurro sobre fiscais da alfândega, delegados, juízes, jornalistas e até donos de depósitos de mercadorias, frotas de caminhões, postos de gasolina, casas de câmbio. Doleiros”. As mudanças de cena, ocorridas rapidamente, sugerem um clima de cinismo nas relações humanas, atropeladas por um mal imenso e abstrato chamado mercado, que justificaria toda a pulverização por que passam os personagens.

A morte simulada de Delano não sugere arrependimento ou tentativa de redenção. É apenas uma fuga, de cujo relato as revelações e denúncias são apenas conseqüências. Cabe a Cecília, ex-amante de Delano, procurá-lo e tentar desvendar o desaparecimento, num dos sutis e, por isso mesmo, valorosos movimentos de lirismo do romance, quando as seqüências de maracutaias cedem espaço a algo que não esteja ligado à busca por dinheiro e poder.

A trajetória declinante do protagonista, na qual a liberdade se converte em oportunismo inescrupuloso, não parece surpreender o leitor. Mas também não é essa a intenção, num tempo em que histórias de corrupção já não chocam mais ninguém. Segundo o próprio autor, inclusive justificando o título, trata-se de uma realidade que “todos conhecemos, mas, muitas vezes, tentamos não ver e esquecer”.

 

*Resenha publicada no Caderno Idéias&Livros, Jornal do Brasil, 21 de abril de 2007