20 de setembro de 2019

O amor como obstáculo, busca e ressignificação

Lançado no final do ano passado, o livro O amor, esse obstáculo (Patuá, 2018), encerra a “Trilogia infernal” de Micheliny Verunschk. Os dois outros são Aqui, no coração do inferno (Patuá, 2016) e O peso do coração de um homem (Patuá, 2017), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018). Se entre os dois primeiros o enredo era o principal objeto de mobilização, criando-se uma curiosidade inexprimível sobre tantas coisas, e de forma tão articulada, este O amor, esse obstáculo presta-se a esclarecer as dúvidas. Quem era a Abutra? Está lá. Quem, ou que tipo de pessoa era o pai de Laura? Também está.

No entanto, o núcleo do enredo que se construiu nos dois primeiros volumes, se pudermos colocar assim, que é a história de Cristóvão, seus pais e a Abutra, é explicada agora em cerca de três páginas. Um dos parágrafos é parcialmente composto assim (pág. 65): [...] Estava sufocada, porque sim, era minha a sua história, se tornara minha desde que ele entrara em minha vida, um monstro sensível, aspergido de perfume, um anjo terrível, tenebroso e caído, que me coloca ali em estado de cumplicidade. Dei para ele, aquela noite, em meio a um choro convulsivo e beijei, como se beijasse um cristo, cada uma de suas cicatrizes [...]. E aí, o que acontece é que Laura morde Cristóvão com toda a sua força. Potencial para a barbárie, ela mesma, que tanto a enfrentava, simples curiosidade ou ritual artístico de Antropofagia? Ela não tem medo dele, mas se identifica muito com o rapaz. Porém o principal desse núcleo está somente nas páginas 85 a 88.

De qualquer forma, a narradora tem pressa, porque há coisas demasiado importantes no desfecho de uma trilogia sobre a ditadura militar. Essa narradora vai desvendando mais lentamente casos de morte e desaparecimento de pessoas que não são personagens, são objetos da pesquisa de Laura. O livro dá voz a toda uma parcela da população que se viu dominada, expulsa, maltratada, torturada e morta, e é esta a importância desse livro de Micheliny.

Como sua irmã mais velha, Laura deixara a casa do pai aos 18 anos e foi morar com a avó. Quando adolescente, ela sabia abrir uma maleta com um envelope onde o pai guardava cédulas de identidade de pessoas que, soube-se depois, foram vítimas da brutalidade do regime militar. E quando o terceiro livro começa, com a morte desse pai, o que faz Laura agir é a pesquisa sobre essas pessoas, a possibilidade de ajudar parentes que se perderam uns dos outros.

No fim do tomo anterior, Laura encontrara Cristóvão, o menino canibal que o pai dela mantinha em casa para que não fosse linchado, numa estação de metrô. Agora, eles se reconhecem e se encontram, às vezes, numa pensão. Cristóvão diz que nunca matou uma mulher (por quê?) e, como já foi dito, a narrativa é breve, parece ser breve demais: muitos elementos importantes são apenas menções nesse depoimento. Mas a questão sensual está ali, e nomeia o livro na página 67: E eu me acabava de tesão por ele desde sempre. Tesão, não amor, esse obstáculo que coloca as pessoas em estado de caça a ser abatida. A expressão já havia surgido em O peso do coração de um homem, então num contexto diverso. Parece que, a toda hora, a narradora, que é Laura, nos convida para um passeio em volta de toda a sujeira que descreve, dando-lhe as costas; somente para que nos sintamos, pelo contraste, mais sensíveis à dor, à perda, ao sofrimento, quando nos voltamos, olhando para o que é realmente importante. O amor, esse obstáculo, é um convite para que não nos esqueçamos do passado, sejamos atentos ao presente e criemos, a partir de agora, um futuro menos angustiante para o Brasil.