4 de dezembro de 2018

Amor, fortuna e revolução.

 

E a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo (…)

Carlos Drummond de Andrade

 

As tendências literárias, no Brasil, sempre chegaram com certo atraso. No que tange aos romances intimistas que se apropriam da técnica do fluxo de consciência, não haveria de ser diferente. Virginia Woolf e James Joyce influenciaram, ainda que um pouco tardiamente, duas grandes escritoras nacionais: Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles.

Em 1973, Clarice publica o romanca Água Viva, aclamado por uns e odiado por outros. Trata-se de um poema em prosa um pouco hermético, que narra as sensações subjetivas do personagem principal, única figura do romance. No mesmo ano, Lygia Fagundes Telles publica seu maior romance: As Meninas. Utilizando-se da técnica narrativa já presente em seus escritos anteriores, especialmente nos contos, a autora explora alguns recursos estilísticos – a alternância do narrador entre a 1ª e a 3ª pessoas, por exemplo – e focaliza o campo político-social do Brasil durante a vigência do Regime Militar.

O romance conta a vida de três meninas – Lorena, Ana Clara e Lia – estudantes universitárias e residentes em um pensionato de freiras. São amigas e partilham entre si suas dores e angústias.

Lorena é rica, virgem, estudante de direito apaixonada por um homem casado – mencionado em boa parte do romance apenas pelas iniciais do seu nome:  M. N. Enfrenta alguns problemas familiares: a mãe namora um sujeito de caráter duvidoso, e o irmão, diplomata a morar no exterior, acabou assassinando o próprio irmão gêmeo, ainda na infância, enquanto brincavam – ao menos esta é versão narrada pela jovem Lorena.

A pequena princezinha é apaixonada por chá e faz do seu quarto uma pequena concha, aonde retorna todos os dias para isolar-se do mundo e poder desfrutar do seu próprio universo. Das três meninas, Lorena é a mais amável. Doce com as outras duas, procura sempre ajudar quando lhe é solicitado, seja pelas amigas – emprestando dinheiro para Ana Clara, emprestando o carro para Lia –, seja pelas irmãs do pensionato.

Lorena representa no romance a aristocracia, a elite no sentido pleno da palavra, não apenas no aspecto financeiro. Percebe-se que a educação que recebeu foi diferenciada, geralmente citando Alta Literatura em suas frases – Drummond, Tolstói –, utilizando expressões em outros idiomas – francês, inglês e espanhol – ou ouvindo seus discos de música clássica – Bach e Wagner.

Uma palavra poderia resumi-la: nobre. Nobreza em todos os sentidos. Ainda que amando um homem casado, sem jamais ter ido para a cama com ele, Lorena não possui um afã sexual pujante. Muito pelo contrário. Observa com alegria as pessoas que se entregam ao sexo por paixão, por aflição ou por desespero, mas sem invejá-las. Ama M. N., e o ama de tal forma que gostaria de poder ter com ele um relacionamento duradouro sem, no entanto, esperar por isso. Um amor nobre.

O amor que sente faz com que compreenda as situações impostas pelo casamento. Impede que prejudique seu amado e a faz aceitar as limitações deste tipo de relação, ainda que ela as conteste nos momentos em que se encontra solitária. O sentido da vida de Lorena é o amor.

Ana Clara, a segunda menina, também é chamada pelas amigas de Ana Turva. Estudante de Psicologia, havia interrompido os estudos. A história de Ana difere muito da história de Lorena. De família pobre, passou por uma infância de atraso e miséria. Abusada sexualmente, Ana Turva acabou envolvendo-se com drogas, já bastante presentes naquela sociedade do início dos anos 70, originando daí seu apelido.

Namorada de Max, um traficante, Ana Clara também era noiva de outro rapaz, o qual desprezava, mas que era detentor de uma pequena fortuna, que lhe asseguraria certa estabilidade financeira. Drogada, alcoólatra, marginalizada, envolveu-se com uma série de homens, tendo realizado alguns abortos na vida.

Ana Clara está sob efeito de drogas – maconha, cocaína, heroína ou álcool – na maior parte do tempo. Perde completamente a noção de tempo-espaço e passa boa parte dos diálogos que a envolvem num eterno divagar, perdendo-se entre sonho e realidade, presente e passado. Frases soltas e desconexas unem-se a lembranças terríveis e premonições de um futuro próximo.

O sonho da drogada é entrar para a alta sociedade, gastar fortunas em roupas, joias e adornos, ser aceita por todos e aparecer na mídia como uma importante modelo. Das três meninas, Ana é a mais bela. Pela própria condição de drogadição, acaba oscilando em relação aos sentimentos que nutre pelas demais. Ora parece gostar delas, ora parece desprezar as amigas. A fortuna é o objetivo de sua vida.

A última menina é Lia, chamada pelas amigas de Lião. É uma guerrilheira subversiva. Uma comunista que tem paixão por Che Guevara e participa de grupos armados fazendo ações terroristas na cidade de São Paulo. Lia, assim como Ana Clara, é volúvel com relação às amigas. Despreza Ana por ser drogada, despreza Lorena por ser aristocrata.

Lia namora um guerrilheiro que foi preso e acabou entrando na troca de presos políticos pela soltura de um diplomata sequestrado por terroristas. Consegue um passaporte e pretende viajar para a Argélia com o namorado, Miguel, assim que a troca for efetivada. O sentido da vida de Lia é a revolução.

As três meninas são amigas, apesar das divergências, e apoiam-se umas nas outras à procura de estabilidade, mas são frágeis, como é frágil a própria juventude. Nos momentos de solidão, as meninas parecem não encontrar algo que dê sentido e unidade a suas existências. Como diz o poeta Drummond: ”[...] por que me abandonaste / se sabias que eu não era Deus / se sabias que eu era fraco.”

Nas últimas páginas do romance, Ana Clara acaba tendo uma overdose e morrendo no quarto de Lorena. As duas amigas sobreviventes arrastam o corpo para uma praça, com medo do impacto que causaria a notícia de morte por overdose em um pensionato de freiras. Temeram pelas irmãs.

Ana Clara morre. Lia vai para o exterior. Lorena fica sozinha. Mas percebe que não está sozinha. Percebe que a vida ganha sentido diante da figura da morte. O caixão sextavado. Seis dias. Os seis dias da criação. No sétimo, Deus descansou. No sétimo dia, no momento da morte, a vida ganha sua forma definitiva. Lorena sempre nutriu compaixão pelos outros, ajudou o próximo, criou pontes que a ligavam aos demais, ajudando os amigos em seus sofrimentos, medos e lutas que também eram os seus medos, os seus sofrimentos e as suas próprias lutas. Sentiu que sua missão para com Ana Clara foi cumprida até o fim. Esperava apenas que, quando chegasse a sua hora de ver a morte, poderia pegá-la nas mãos, olhá-la nos olhos e dizer: “estou pronta.” A morte tem duas portas, nas palavras do Pe. Antônio Vieira. Uma de vidro, por onde se sai da vida e outra de diamante, por onde se entra à eternidade. Entre essas duas portas encontra-se o homem no instante da morte: não pode voltar e terá de entrar, de forma definitiva, para onde não sabe. 

Guilherme Stumpf. 
Acadêmico de Direito da UFRGS.
Membro do grupo de pesquisa "Filosofia e Direito".
Assessor Especial da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre.