17 de maio de 2018

A guerra fria entre Eros e Thânatos em "Amortalha"

Amortalha (2017) reúne 21 contos em que amor e morte lutam numa “guerra fria”. É o terceiro livro de Matheus Arcaro, que debutou com Violeta velha e outras flores (2014), também de contos, e publicou o romance O lado imóvel do tempo em 2016, todos pela Patuá.

Para o filósofo Matheus Arcaro esse livro revela a tensão que os mais diversos objetos da filosofia, em geral, exercem sobre o nosso dia a dia; e, em particular, o amor versus a morte. Amortalha, o título, já traduz esse confrontamento. Também é um livro bastante confessional: nele, o autor escreve sobre o pai, a mãe, os filhos, sem incorrer no individualismo fortuito. A verdade é que Amortalha é um livro poderoso, em que o individual sugere e emula o universal.

O livro é bastante regular em sua qualidade: não há um conto que seja menos interessante literariamente do que os outros, todos são muito bem compostos. Apenas a título de exposição – deixando de lado a questão do mérito específico de cada um – comentarei alguns. O primeiro é “Foucault ficcionista”. Nele, um tal Sigmund é o analista de um tal Sócrates. Aqui Matheus usa a matéria filosófica para lançar luz à dicotomia morte-vida. Sócrates está sofrendo uma perseguição e, pela primeira vez em um ano, aceita deitar-se no divã (quem conhece um pouco de psicanálise sabe o que isso significa).

Essa dicotomia está em outros contos também, como “Fora do ar”, uma narrativa carregada de agitação que trata do sumiço de todos os aparelhos de tevê em uma ilha e as voltas que Alexia, a protagonista, dá para desvendar o mistério.

A tensão entre Eros e Thânatos não se evidencia apenas em uma ou outra narrativa do livro; está também nos dois microcontos do volume, como “Celebração”:

No aniversário de vinte anos, mesmo sendo sábado, ele vai cedo para o quarto. Escova os dentes, penteia vagarosamente os cabelos, veste o terno inédito. Apaga o abajur e, abraçado ao retrato de Mário, deita-se sob o edredom. Minutos antes, porém, espalha gasolina pelos cômodos da casa, deixando um rastro até a calçada. Mora a alguns metros da danceteria mais movimentada da cidade. Está convicto de que, em pouco tempo, fumantes mal-educados passarão em frente ao seu portão.

É interessante notar que o suicídio iminente se intrinca com atos de verdadeiro amor por si próprio, o que está na escovação dos dentes e o trato no cabelo. Mas há ainda o “(A)feto”:

Não viu jogarem a última pá de terra sobre a mãe. Às pressas, precisou levar a esposa à maternidade.

Todos os contos trazem uma epígrafe e uma ilustração de Ubirajara Júnior.