21 de fevereiro de 2018

“Ferrugem”, um livro de Marcelo Moutinho

Jornalista e escritor de olhar aguçado para o espaço urbano e sua vasta galeria de personagens, Marcelo Moutinho escreveu e a Editora Record publicou o livro “Ferrugem”, reunião de 13 contos. É inclusive obra vencedora do prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional.

Já nos primeiros contos do livro percebe-se a linguagem de expressão trabalhada, tensa, e profundamente criativa a descerrar a ardorosa vida interior das personagens. O jornalista sabe que o espaço do conto é curto, introduz-lhe elementos de lirismo, dramaticidade e sugestão que fazem a história adensar-se, transbordar significados, e o escritor condimenta o texto reinventando a realidade, criando-a na ficção. O resultado é uma prosa lírica de movimentação de ideias. Mas é preciso que se diga também e, a bem da verdade, que o livro tem altos e baixos, com alguns contos mais densos do que outros, aí já entramos no terreno da subjetividade da percepção de cada leitor que acrescenta seu gosto pessoal, e não há “crítica”, ou resenha – sobretudo ‘certas’ resenhas ou ainda crítico, que a esse fato irrevogável anteponha juízos. Elementar, todo contista sabe disso, sobretudo quando se fala de textos curtos. O que “conta” é a média de qualidade dos contos reunidos dentro do conjunto da obra. Essa média em Marcelo é alta. Vejamos por que.

Duas ou três resenhas a respeito da obra, publicadas em páginas da internet, instigam a curiosidade a respeito. Em uma delas se disse que o conto “Xodó” é: a história de uma “garotinha que flagrou o irmão mais velho fazendo 'coisas estranhas' com sua boneca favorita”, em outra, ou na mesma resenha, afirma-se que o conto “362” narra o episódio de um “homem apaixonado por uma desconhecida dentro do ônibus”, outra ainda, refere-se ao conto “Três apitos” como sendo o depoimento de uma “mulher soropositiva abandonada pelo namorado” Vejam só! A leitura da obra e sobretudo, dos contos acima elencados nos diz coisa bem diversa, e que poderia ter sido escrita. “Xodó” muito além da história de uma “garotinha que flagrou o irmão mais velho fazendo 'coisas estranhas' com sua boneca favorita”, é um achado no que diz respeito ao desabrochar avassalador da sexualidade humana e que, justamente por ser tão pouco ensinada, ou não ensinada às nossas crianças dá ensejo aos desvios relatados no texto. Segundo a perspectiva da garotinha-narradora: “Mamãe realmente comentou desse sangue (menstruação), mas não havia dito nada sobre líquidos que saem dos garotos quando crescem”. Fantástico o texto e mais ainda o desfecho.

“362”. Esse é o supra-sumo. Poderia bem ter um sub-titulo. “As artimanhas do desejo”. Uma cobradora de ônibus, convive diariamente com um passageiro, o Custódio. “O Custódio me respeita”, afima ela, depois pensa sobre o tal: “Sempre limpo, cheiroso, perfume bom. E aquele bigode perfeitamente aparado, tenho um fraco por homem de bigode. Se eu fosse mais nova, não escapava. É meu tipo”. Ocorre todavia que o Custódio vem a se interessar por uma passageira que, assim como ele, toma o coletivo diariamente. Pronto; está armada a trama. O desejo dele pela garota jovem e bonita, a ajuda que imagina (coitado), ter da cobradora, o jogo que se estabelece de sedução, e dissimulação, uma trama interessantíssima. Mais um ponto para o autor.

“Três apitos” não é o depoimento de uma “mulher soropositiva abandonada pelo namorado”. É o testemunho vivo de relações de “amor” nas quais vigora o interesse meramente sexual, que termina por revelar nessa condição de usufruto de corpos, a extrema fragilidade dos laços que unem certos casais. Pungente a realidade abordada, sobretudo quando toca a condição dos enfermos de AIDS.

Outra pedrada que escreveram sobre o conto “Caiu uma estrela  na minha sala”: ainda que acertassem quanto ao gênero “realismo fantástico” do texto, afirmar que o conto  é “uma alegoria para as celebridades miúdas e insossas que povoam a televisão brasileira”, é o fim da picada! A metáfora envolta aí é sim a violência nossa de cada dia – e no caso do Rio de Janeiro já a níveis insuportáveis - , a estrela que entra pelas casas adentro da população carioca diariamente são as balas perdidas! Que incendeiam televisões e o que estiver pela frente e faz os moradores se esconderem temerosos atrás das poltronas. Balas perdidas com os “estrelismos” da bandidagem cujos holofotes televisivos engrandecem. E todo mundo sabe do que estamos falando. Outro conto muito bom este! Falemos de dois  que merecem registro.

“As praias desertas” e “Dezembros” nos fazem lembrar de alguma forma, daquele flâneur de Walter Benjamim porque margeiam aspectos da percepção humana com o avanço da técnica e da urbanização. Vemos personagens que embora carreguem conflitos próprios, vivem no limiar entre o passado – tempo da tradição, da transmissão de experiências coletivas duradouras e compartilháveis -, e o presente da imediatez, da repetição, da reprodução incessante e do consumo que transforma todas as coisas em mercadorias.

A esse propósito veja-se e reflita-se, sobre o que representa para além da ligação afetiva e familiar, a figura do avô Domingos Santana da Silva” no conto “Dezembros”. Esta figura acaba por se configurar numa metáfora alargada, como aquele que ainda dispõe de fragmentos da experiência histórica. O narrador que pesquisa o passado do avô não buscaria também a consciência histórica atual? Veja-se o fecho deste memorável conto.  No início de uma caminhada “rumo à Cinelândia, devagar, bem devagar”...

Marcelo Moutinho com sua prosa de compaixão pelos humildes, clarifica significados além dos grosseiros sentidos e da rotina do tempo e o faz muito a contento na arte de desnudar consciências e descerrar corações. Conhece bem a unidade básica de modulação e desenvolvimento do gênero e se aprimora na medida em que aprimora também a revelação - a impressão inicial se revigora nas palavras do fecho -, pois ilumina o instante crítico das narrativas.

A palavra ‘Ferrugem’ é substantivo que significa a corrosão de metais ferrosos. É também a doença  de vegetais que se traduz por manchas vermelhas ou negras nos frutos, que logo apodrecem. “Ferrugem”, é o título desse livro. Um título que, se nos induz a refletir sobre a deterioração das relações, sentimentos, e  afetos, também expressa e propõe, - aí o fio que une os contos -  a inversão do processo de deterioração, degradação e destruição de nossos vínculos, sobretudo os afetivos: “E que possa enfim o ferro comer a ferrugem”, como fica a nos ressoar o verso de João Cabral de Melo Neto usado como epígrafe ao livro. Resta-nos afirmar com todas as letras, que os contos vistos no conjunto da obra trazem uma perspectiva de aguda observação e rara sensibilidade sobre a vida. Certamente aqueles que se aventurarem a lê-lo ganharão em experiência humana que em literatura afinal, é o que conta.

 

Livro: Ferrugem, contos de Marcelo Moutinho, Editora Record, Rio de Janeiro-RJ, 2017, 160p.

 

(*)Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e  Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México, Portugal e  Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. //