5 de setembro de 2017

Cão que ladra não morde?

Estava furioso a ponto de babar. Olhou-se no espelho e se atracou. Para além do vidro quebrado e do sangue que jorrava, não teve a mínima graça. A vida continuava igual e não havia ninguém por perto para partilhar aquele arroubo de fúria.Já debaixo do chuveiro, começou a examinar em um nível mais profundo essas suas reações diante do inevitável. Por que reagia desse jeito sempre que um relacionamento terminava? Por que não aceitava o fim, não passava um tempo sozinho curando suas feridas e depois partia para outra?Precisava modificar esse comportamento inaceitável. Sua mulher, no quarto ao lado, certamente iria continuar a discutir a relação. Típico das mulheres. Decretavam o fim e ainda queriam conversa. Mas, avante. Teria de estar pronto para o embate. Antes de entrar em campo para a partida decisiva, decidiu sair à francesa pela janela e dar uma passada rápida na casa espírita que frequentava. Sentou-se a um banco ao fundo, na fileira da esquerda, fechou os olhos para uma melhor concentração e pôs-se a ouvir a palestra daquela noite.O tema não poderia ser mais apropriado. A irmã Rosely discorria sobre a importância de se fazer um balanço sobre o ano que estava prestes a se encerrar. Muito mais do que agradecer pelas coisas boas e pelo que tinha sido positivo, era necessário lançar um olhar para aquilo que deixara a cada um contrafeito. Nos momentos felizes, o aprendizado era quase nulo, posto que se ficava a saborear cada conquista e meta atingidas. Era na dor que o ser humano aprendia as maiores lições. Na repetição dos mesmos erros à espera de um milagre, devia-se tentar o questionamento do porquê das dificuldades de modificação frente a um comportamento ritualístico. Agradecer a Deus pela oportunidade de crescimento era fundamental para uma nova postura diante da vida.Assimilada a lição, Roberto começou a orar devotadamente, em um processo de aceitação pelo que a sua existência lhe permitira até então. Era necessária uma saída alternativa, ao menos uma tentativa de olhar para os seus problemas por um novo ângulo. Antes de se retirar, tomou um gole de água fluidificada em busca de purificação.No caminho de volta à casa, a palestra continuou a reverberar em seu cérebro. Era tempo de recomeçar. Um misto de alegria e esperança percorria todo o seu ser. Já havia perdido muito tempo em adiar a solução para os problemas de seu casamento com Mirtes.A mulher estava na calçada tomando chimarrão com a vizinha. Reduziu a marcha para observar com ternura a criatura com a qual passara os últimos dez anos. Sim, havia uma solução. Sempre havia uma nova possibilidade. No instante em que puxou uma Ave-Maria mentalmente, girou o volante em direção à calçada e acelerou. O próximo ano seria diferente.

 

Claudia Gelb é professora de Português, Literatura e Redação desde 1995. Possui Licenciatura em Letras (Universidade Luterana do Brasil), Mestrado e Doutorado em Teoria da literatura, sendo o doutorado com ênfase no eixo da Escrita Criativa (PUCRS). Fez Oficina de Criação Literária com o professor e escritor Assis Brasil. Publicou a novela Transmutação pela Editora Bestiário em 2008.

O conto acima faz parte de seu livro lançado pela Editora Moinhos, chamado Consertos de Oficina.