o dia em que eu fugi pro quilombo
eu corro, corro, corro, mas o feitor está muito próximo e é homem valente e rápido. eu sei que ele vai me matar, eu perdi o resto do grupo, como achar o quilombo, que diria minha mulher que já está lá, quantas perguntas! eu sou bom de capoeira; talvez, se o feitor me alcançar, eu dou um “pé no ouvido” dele e tiro aquela espingarda dele, levo pro quilombo junto com os meus poucos quilos e a experiência em fazer pequenas plantações. lá no quilombo tinha muitas plantações, nego vive do que planta, para si e não para os outros, e não pode beber, porque bebida é feitiço de homem branco, e eu a escapar do feitor logo antes de ir para o tronco, também, que se foda, não fiz nada demais, aliás, mesmo que fizesse, ninguém tem o direito de privar a gente da nossa liberdade e ainda quase matar no tronco, por fim: o tronco, a casa-grande, a senzala, o melaço e o açúcar, o feitor e o sinhô que se fodam, eles não me deixavam nem cultuar meus orixás, eu sou filho de Xangô e ninguém vai botar a mão em mim, minha mulher é de Iansã, também é guerreira e eu não duvidava nada que ela viesse pelo caminho me encontrar, mas só que seria muito perigoso, e eu não queria perigo para ela, não! estou correndo, o feitor está na cola, os bem-te-vis e araras fazem alvoroço, alvoroço parece almoço, faz tempo que eu não como. estou começando a ficar fraco, vida de nego é difícil, o sinhô é implacável, ô homem ruim que eu nunca vi igual. aliás, tem: o feitor, e ele vem, corre pela picada aberta pelos outros, quando chegar lá vou dizer para camuflarmos a picada, daqui a pouco tá todo o mundo de volta para a senzala, nossas mulheres sendo estupradas, nossas filhas, ainda pequenas, sendo estupradas, e se a gente dá um pio é tronco. sinceramente, eu não desejo nada de mal para o sinhô, que ele morra de morte tranquila, ele vai pagar sozinho, o mesmo pro feitor, que é mestiço, nascido do incesto bastardo entre o sinhô e a neguinha mais bonitinha da senzala daqueles tempos, e virou ruim, puxa o saco do pai, mesmo não chamando ele de pai, que levava uma porrada na boca para nunca mais repetir aquilo. agora tá complicado, ele tá me alcançando, vou subir numa árvore, mas os macacos vão me denunciar. vou arriscar. a minha mulher que não venha me buscar. é como eu sempre digo: cada macaco no seu galho, e eu não sou do galho deles, mas subo o mais alto que posso, a vegetação é magnânima, camufla, e eu estou quase no céu em cima desta árvore que eu não sei o nome, a gente fica muito ignorante no brasil, na nossa áfrica a gente sabe tudo, eu só não sabia que chamava áfrica, isso foi branco que disse. eu tô no céu, se a espingarda me alcançar, ou morro do tiro ou morro da queda; ou, pensando bem, morro de medo, porque sou filho de Xangô mas tenho medo às vezes, não é sempre, normalmente sou marrento e consigo tudo o que quero, é claro que esses anos de escravidão não contam, eu mal podia fazer uma oferenda, mas batia no tambor improvisado, engraçado, estou falando tudo no passado, será que é porque eu vou chegar até o quilombo ou vou morrer? puta que pariu, o desgraçado atirou. passou longe, ele não sabe onde estou, menos mal. eu trouxe uma pedra grande para jogar na cabeça dele, mas não enxergo ele daqui, essa pedra tá me estorvando, vou criar coragem e vou descer uns galhos. barulheira de novo. ah, tá lá o filho de uma coitada, ele precisa vir mais para cá. é melhor gritar. “feitor fedorento!”. ele abre um sorriso, um dos dois vai morrer, e não vou ser eu, tenho comigo que essa pedra dá cabo dele. ele me procura. chegou bem perto. hora de arremessar a pedra, záz! acerto, feitor ficou para semente. agora vou pegar a espingarda do pilantra. eu não sei mexer nisso. descer da árvore foi fácil, mas a espingarda é pesada, eu não contava com essa. bom, vou levar, vai que o feitor estivesse com mais gente. onde eu já imagino estar perto do quilombo vejo um vulto, que se esgueira por trás de uma árvore. são eles. corro até lá, arma em punho, todo o meu desespero e: bum! atiro. quando me abaixo para ver quem matei, o pavor e o remorso me dominam. ela, a minha mulher, era ela! ela pressentira minha chegada. agora jaz, menos de um tiro de onde fica o quilombo. largo a arma, vou para lá. é preciso fazer um funeral pra minha companheira, pedindo as bênçãos de Iansã e o perdão de Oxóssi, o rei das matas, e de Exu, o dos caminhos, porque errei um erro que vale por toda a minha vida – e depois de tudo, terei eu ainda uma vida?