7 de fevereiro de 2017

Cheiro de merda

Rosa fedia a merda. Não, não, não.  Não era possível uma coisa dessas. Rosa era linda. Rosa sempre tivera os melhores dos odores do mundo. Aromas doces, com notas amadeiradas e um leve cítrico que quebrava a expectativa óbvia de seu cheiro de princesa.  Naquela manhã, no entanto, Rosa cheirava a merda. Continuava bela e, deitada entre os lençóis muito brancos, era inimaginável que aquele cheiro infecto exalava dela. Aproximou-se com cuidado. Inalou a pele de Rosa. Ânsia. Levantou-se.  No banheiro tomou uma ducha, barbeou-se, escovou os dentes. Devia estar sonado demais para ter uma impressão dessas. Voltou ao quarto. Aproximou-se de Rosa. Ânsia. Ela despertou.

- Já vai trabalhar?

Precisava sair dali, de perto daquele cheiro insuportável e inexplicável.

- Compromisso cedo hoje –mentiu- E já estou atrasado.

Jogou um beijo de longe e saiu rapidamente do quarto para evitar contato.

Chegou cedo e aliviado ao trabalho. Escritório vazio e tempo para respirar. Reunião com a chefia em dez minutos o celular avisou.  Descansaria a cabeça daquela loucura que acontecera pela manhã.

Na sala de reuniões a chefia começou a chegar. Ajeitou os documentos necessários, preparou-se para anotações.  Mesa cheia. Um cheiro de merda começou a sair da boca do chefe. Não era possível! Virou-se para o colega de trabalho que também fedia.  O ambiente ficou todo tomado por um odor podre.  Teve náuseas. Ficou pálido. Foi encaminhado para o pronto-socorro.

Exames feitos, soro na veia. O médico se aproximou.

- Tudo bem com você. Os exames deram todos normais. Talvez tenha sido alguma coisa que você comeu.

Sabia que não era. O médico também fedia a merda. Precisava contar a ele. Explicou o cheiro que sentia das pessoas. Que Rosa, sua mulher linda e loura, fedia a merda. Que o seu chefe, CEO supremo, PHD em diversos assuntos, reconhecido internacionalmente, cheirava a merda dentro do belíssimo e bem cortado terno italiano dele. Que seus amigos, jovens bem nascidos, bem posicionados na vida, emanavam um odor nauseabundo de suas peles. Que ele, um médico conceituado, detentor de diplomas e especializações de excelentes universidades fedia a fossa, ele omitiu por educação. “Alucinação olfativa.”. Foi esse o diagnóstico. “Provavelmente ocasionada por stress. Vou dar uns dias pra você descansar e uns comprimidos para você relaxar. Terapia e atividades físicas ajudam.”, sentenciou.

Nenhuma novidade. Diagnóstico padrão. Talvez fosse até verdade. Os últimos tempos tinham sido intensos. Mudança de cargo, noivado, novas perspectivas profissionais. Uma viagem curta, sozinho poderia ser uma boa opção.

Saiu do pronto-socorro ainda desnorteado. Alucinação olfativa. O mundo andava muito louco mesmo. Precisava se cuidar. Um bom almoço cairia bem, precisava se alimentar.  Procurou um restaurante bem recomendado, com ambiente aconchegante. Definitivamente precisava dar mais atenção a si próprio. A vida engole a gente e acaba dando nisso. Entrou no restaurante. Decoração clean, comida contemporânea, pouco movimento.  Era ideal. Sentou-se numa mesa mais afastada das demais. O garçom se aproximou. Fedia. Os pratos que passavam pelo salão também espalhavam o cheiro de merda por todo o restaurante. Teve ânsia. Sem palavras deixou o local. Saiu sem rumo pela rua. As pessoas fediam. Todas elas. Transeuntes, motoristas, homens, mulheres, crianças.  Todos fediam e exalavam o cheiro de merda pelo mundo. Não iria aguentar. Precisava fugir dali. Caminhou rapidamente. Chegaria em casa, faria as malas e partiria em viagem o tempo que fosse necessário. Tinha que se cuidar. Não suportaria. Na velocidade dos seus passos, esbarrou em alguém. A pessoa cheirava bem. Incrivelmente bem. Era um alívio para suas narinas. Virou-se para o homem.

- Foi mal, moço.

O homem se desculpava humildemente. Vestido com farrapos, barba longa, cabelos empastelado de sujeira, o mendigo exalava um frescor incomum. Teve vontade de abraçá-lo e guardar o aroma do indigente dentro de si, mas o homem desapareceu no meio da multidão fétida. Não podia deixa-lo sumir assim. Era sua única chance de compreender o que ocorria. Seguiu o homem à distância. Chegou não local onde ele se abrigava, embaixo de um viaduto onde muitos outros iguais a ele se espalhavam pelas suas misérias. Um odor agradável preenchia o lugar imundo. Ali seu olfato havia encontrado o sossego. Perto de alguns sentou-se tímido. Sem perguntas dividiram com ele a refeição colhida do lixo. O aroma era apetitoso. Faminto, comeu até se fartar. Depois repousou seu cansaço nos papelões disponíveis pelo chão. Acordou horas depois, descansado e confuso. Os insetos subiam pelo seu corpo. O suor encharcava sua roupa. Uma criança miserável aproximou-se. Olharam-se. Abraçou-a fortemente e inalou seu perfume delicado. Não conteve as lágrimas. O que seria da sua vida? Subiu o viaduto. A cidade se erguia fétida. Olhou os miseráveis aos seus pés. Largou o corpo no espaço, mergulhando infinitamente no cheiro doce dos homens sem nada.