17 de janeiro de 2017

Engulhos

Atendi ao telefone. A voz, do outro lado, não me dizia nada. Eu não prestava a mínima atenção. Dava respostas automáticas. Quando desliguei, senti nojo.

Parei para pensar no nojo. Você pode, na rua, ver um mendigo, com seu mau cheiro, e sentir nojo. Pode ver merda de cachorro na calçada e sentir nojo. Pode sentir nojo também de certos políticos ou de pessoas do seu convívio que não têm integridade ou outra característica relevante.

Mas aquele tipo de nojo eu jamais sentira.

Enquanto falava, daquele jeito idiota, eu imaginava a dentadura dela caindo. Ok, não precisa ter nojo por causa disso. Mas em seguida, um filminho com os hábitos daquela pessoa, da sua casa, dos seus animais, dos seus filhos pequenos e mal-educados, da sua extrema pobreza; tal filminho me deu nojo não apenas dela mas de todos na casa. Eu não voltaria lá, se pudesse.

Acontece que eu sou caridosa. Não pense que sou relapsa. Sempre levava cestas básicas e enxovaizinhos de bebê aos lugares mais pobres e fétidos. E mas eu jamais sentira nojo!

E agora, o nojo daquela mulher. Passei o dia inteiro sem comer. Ao sentir fome, pensei na comida dela, e meu estômago recusava até a água.

Seus filhos também me davam nojo, mas menos do que ela. Acho que era porque eu não havia falado com eles ao telefone. Eu detesto telefone, e acho que foi isso o que causou o nojo: o telefone, a chata conversa por telefone.
O nojo era da carne branca e já parcialmente flácida dela, rescendendo a leite de rosas. Eu pensava que seus filhos tinham a mesma carne e eram igualmente repugnantes às minhas entranhas.

No dia em que ela morreu e vi os meninos em volta do caixão, a má sensação se repetiu, mas de forma muito mais intensa. O que estava acontecendo?

Então, eu comecei a fazer um histórico mental entre mim e aquela mulher que ali jazia. Sempre que a visitava, ela acendia uma vela. Ela me tinha como um anjo protetor que levava o de-comer à sua casa. A vela era endereçada a mim. Certa vez, percebendo isso, senti nojo, mas de uma forma bem atenuada.

No entanto, quando morreu, o nojo se multiplicou por quatro no velório: afinal, havia quatro velas grandes em volta do caixão. Nem cheguei muito perto. Os engulhos já começavam.

Resolvi ir para casa e voltar somente para o enterro. Não se enterram mortos com velas!

Que tristeza, ai de mim! Eu esqueci que, bem na entrada do cemitério, havia um espaço reservado somente para o uso de velas dedicados aos mortos. O cheiro forte que provinha dali me fez passar mal. Eram velas acesas, velas pela metade, resquícios de velas apagadas. Um cheiro fortíssimo e que me ligava àquela mulher.

Resolvi ser radical. Apanhei um pouco de cera derretida, ainda quente, e a comi. Vomitei por três dias ininterruptos.

Até hoje tenho engulhos à memória da velha e nunca mais participei de nenhum tipo de rito que envolvesse velas.

Quanto aos órfãos, nem sei o que se deu com eles. Parei com o trabalho voluntário. Eu já não tenho forças para isso.