21 de dezembro de 2016

Encontros e extravios na poesia de Iacyr Anderson Freitas

 

A poesia sempre nos dá surpresas gratas, como se nos tornasse mais humanos, mais densos e mais leves, a um só tempo. Os que questionam a sua utilidade simplesmente não têm imaginação. Teriam que questionar a vida toda, feita de coisas por vezes tão encantadoras e tão agudamente frívolas (se é esta a palavra) que o utilitarismo fica fora de questão, decididamente. Poesia é felicidade, é nuvem, é átimo de suspiro, esplendor e fuga e consciência precária do Eterno num instante precioso – ou seja, uma fantástica inutilidade essencial, uma besteira cuja perda nos aleijaria, uma distração fundamental dentro de nosso estúpido peso terrestre e contingente. Se sentir-se feliz e grato e mais inteligente e vivo não é necessário, o que é que é necessário, afinal? O utilitarismo nos lança nesses impasses inumanos e tolos (embora envernizados de inteligência), quando queremos que sua coerência tudo enrijeça e explique.

Iacyr é herdeiro da contemporaneidade, das perguntas que não querem calar a respeito da própria poesia que vêm de longe e marcaram profundamente os fazedores e leitores de poesia no Brasil deste século desde Drummond e outros, mas creio que sobre todos se destaca aí João Cabral de Melo Neto, pelo seu aspecto de construtor e interrogador constante do próprio fazer. A poesia passou a se pensar, e se pensar o tempo todo, a certa altura, e, se isso explica a impopularidade em que mergulhou, não a diminui como ofício de grandeza estética.

A despeito dos riscos áridos do cerebralismo, sabe-se que o bom poeta nunca renuncia ao seu lastro emotivo, ainda que tenha que, como herdeiro fatídico de gerações que o antecederam, entrelaçá-lo com questionamentos sem inocência e deslumbramento e simplesmente não possa mais ser sentimental sem pagar caro por isso nem renunciar à ironia e à consciência da irrisão de seu próprio voo que tenta ser absoluto e, claro, é apenas relativo ( ele é anjo de asa quebrada, não adianta).

Tudo isso já sabemos como modernos, ou seja, como reflexivos, contritos, ambíguos, descrentes assumidos ou involuntariamente céticos. Mas Iacyr tem conseguido colocar questões filosóficas e mesmo vistas como esotéricas e talvez pesadamente acadêmicas num ritmo emotivo e dramático – o exemplo neste “Via Vária” é o belíssimo poema sobre Heidegger.

 

 

Neste livro, paralela à preocupação já típica de Iacyr com a ambientação mineira, com o humor, com as feridas metafísicas, prevalece o formato de quadras caro a João Cabral, com aquela minuciosa descrição de coisas e gentes, num ritmo de exposição de minúcias e de reversos reveladores e quebras de expectativa. Várias vezes lembrei-me do Cabral que primeiro me entusiasmou, o de “Terceira feira”, mas também de outros tantos Cabrais, culminando num poema sobre o cemitério de Juiz de Fora sobre o qual Iacyr deita olhar cabralino e intertextual e avança para revelações suas em terreno formal alheio. Iacyr é Iacyr, Cabral é Cabral, e as confluências assumidas também são transcendidas. A fusão entre os dois poetas é de um sabor bem especial, acreditem.

O livro se inicia com um excelente prefácio de Alexei Bueno.  Gostei especialmente deste trecho (páginas 11 e 12), que reproduzo: “Todo homem de espírito, em todas as áreas, é periodicamente atingido por perguntas idiotas. No caso dos amantes de livros, escritores ou não, é recorrente a célebre questão: “você já leu esses livros todos? Para os poetas, há uma que talvez seja pior: “sobre o quê você escreve?” Ora, tal pergunta, que já seria absurda para um ficcionista – com a exceção dos especializados em subgêneros, como o romance policial etc – é, para um poeta, angustiosíssima. Todo verdadeiro poeta, no fundo, escreve sobre tudo, tudo que é o mesmo para toda a humanidade, embora ele desenvolva uma visão única e intransferível do próprio. Há mesmo poemas totais, onde, para um leitor agudo, todos os assuntos se encontram.”

Pode-se dizer, para quem conhece Iacyr, que seu livro trata de tudo, mas que seu estilo e suas particularidades estão aqui: o heroísmo e os resíduos fantasmagóricos e patéticos da História, o humor, a metafísica. Mas é de destacar, nesse livro, a seção deliberadamente voltada para a graça e até o deboche que é “Momo, migrações”. Iacyr consegue falar de uma coisa dolorosa, o exílio em que brasileiros vivem no tal Primeiro Mundo, levados por esperanças e por necessidades de uma vida melhor e forçados a descobrir outras vidas, outras máscaras, outras dores. Alexei Bueno, no prefácio, diz que é “assunto quase ausente na poesia brasileira, apesar de sua vasta importância sociológica”.

Os escombros dos sonhos dos migrantes, mais parecidos a pesadelos, claro, são redimidos pela graça, pela linguagem decididamente solta, informal e brincalhona dos poemas, que, no entanto, fazem pensar. Esse humor desiludido (e às vezes até mesmo acre) retorna nos excelentes “Otimismo ponto com”, “Tertúlia”, “Balanço póstumo”, mas está sempre lá. Iacyr, na certa, concordaria em que um motivo para pranto é também um excelente motivo para riso e que não há pergunta grandiosa que façamos que não possa ser respondida com a zombaria cruel particular à vida, que pouco se importa com os destroços que vai deixando pelo caminho. É o célebre riso que temos na cara, forçado, ao levar uma facada pelas costas.

Tenho também que registrar que as vias de encontro e extravio desse livro da Nankin Editorial estão magnificamente sugeridas na foto da capa do livro (de Ozias Filho), trabalhada no belo projeto gráfico de Antonio Amaral Rocha.

Mas de Iacyr quero recomendar ainda o fundamental “A soleira e o século” (também pela Nankin) e seu magnífico “Estação das clínicas”, lançado recentemente pela Escrituras.