22 de novembro de 2016

O enterro

O telefone tocou. Sabia o que era. A voz do outro lado disse o que já era esperado há algum tempo. Com educação e frieza comunicaram que o estado da mãe piorara nas últimas horas e sua presença era necessária no hospital. Eufemismos baratos. Sabia que a mãe morrera. Era assim que davam a notícia, sabia. Depois de uma longa doença, anos em clínicas de repouso, meses no hospital, a mãe finalmente descansara. Ela havia se libertado daquele corpo doente e frágil. Suspirou. Tomou um café preto sem açúcar para despertar e foi até o hospital. Seriam muitas providências para se tomar. Morrer não é fácil.

Mentalmente foi elaborando os processos que deveria tomar para o enterro, pensando como avisar a todos, onde encomendar as flores. A mortalha já estava separada, o jazigo da família preparado. A enfermeira da UTI o esperava.

- Bom dia, senhor. Sua mãe quer vê-lo.

Um choque. Como assim? Ela não havia morrido? Não é assim que fazem pra chamar os parentes? Com tanta idade o que mais poderia esperar?

- Eu pensei que...

A enfermeira não deu ouvidos, apenas abriu a porta da UTI e o encaminhou ao leito da mãe. Ela respirava com dificuldade. Era um corpo débil. Abriu os olhos ao toque da mão do filho.

- Filho... tenho um último pedido...

Olhando nos olhos da mãe, em silêncio, aguardou o pedido final. Talvez uma nova mortalha, uma missa em alguma igreja, um lugar para doar seus pertences.

- Quero o meu enterro com todos os filhos e netos....

A voz da mãe saiu surpreendentemente firme. A enfermeira limpou uma lágrima emocionada. A progressão geométrica familiar fazia esse ser um pedido impossível. Filhos e netos espalhados pelo mundo. Nem todos estariam disponíveis para uma despedida já tão prevista.

- Mãe...

- Só isso que peço filho...

A mão do filho foi apertada num esforço final de manter a alma ao corpo e depois abandonada à entrega da morte. Ficou ali engasgado com o adeus da mãe.

- O senhor pode me acompanhar?

A doce enfermeira tocou seu ombro o guiando até uma pequena sala. Ofereceu um copo de água. Sentado desolado na saleta, aguardava o médico que chegou rapidamente. Prático nesses assuntos de chegadas e partidas, foi listando as providências que deveriam ser tomadas.

- O senhor está me ouvindo?

Não, não estava. O médico percebeu sua angústia.

- Não podemos adiar a morte. Mas podemos adiar a partida.

O médico explicou que havia um novo método, uma releitura de antigos processos de embalsamamento, que garantiria que a falecida poderia ficar aguardando o melhor momento para o enterro. Até dez anos e talvez mais, caso fosse necessário. Pensou que poderia ser uma solução. Ligou para os irmãos. Todos concordaram. Estavam todos comprometidos nos próximos meses. Fechou o contrato de conservação de corpo com o médico. Seis meses seriam suficientes. Saiu aliviado do hospital. Viu o corpo da mãe sendo transferido. Não iria se despedir ainda. Teria o tempo adequado para cumprir o último desejo dela.

***

Um período de formação profissional no exterior adiou o enterro da mãe. Depois a gravidez de risco da cunhada. A formatura do neto mais velho. O divórcio da irmã. Prorrogou o embalsamamento por dois anos. Depois para mais cinco. Talvez não precisassem de tanto tempo, mas a vida é um moto contínuo, não dá pra parar. E depois a mãe tinha feito um pedido, todos estavam cientes que ele devia ser cumprido. Só o tempo que era injusto e corria demais.

Sete anos passados. Não era possível adiar mais. Todos concordaram que era a hora de sepultar a mãe. Conseguiram reunir todos os netos, todos os filhos e a cerimônia do adeus foi programada com tranquilidade e muita emoção. Uma van levaria toda a família para o velório na capela da cidade natal da mãe. Muitas flores e afeto para finalmente poderem se despedir da matriarca da família.

A van seguia para a cidade. O silêncio se fazia entre eles. Era o momento do fim. Os compromissos adiados deveriam ser remarcados. Talvez desse tempo de marcarem um jantar com alguns irmãos que pudessem passar a noite por lá. Os netos impacientes, entretinham-se no celular. A manhã vinha alta e clara. A van se largou nas curvas da serra que os levava à mãe. Duas, três, quatro capotadas ladeira abaixo. A família estava, finalmente, reunida novamente.